Bolivia, Sucre, na capital indecisa de um pais a beira da guerra civil

"Queremos viajar, no temos recursos para comer, los niños tienen Frio Y Hambre!"




Era a quinta vez no espaço de quatro dias que passava no terminal de autocarros de Sucre. A situação era a mesma, não se sabia quando iam cancelar os bloqueios. Os campesinos haviam feito um cerco á cidade e ninguém entrava nem saía, incluindo comida que começava a escassear nos mercados, o seu preço subiu como uma flecha em direcção aos céus. No silêncio do terminal que, uns dias antes era um arco-íris de ruídos e vida, os destinos eram apregoados a alto e bom som, e era impossível descer a rua sem se ser oferecido passagens para os quatro cantos do país, lia-se agora apenas um cartaz silencioso - "Queremos viajar, não temos recursos para comer, as crianças tem Frio e Fome!" Na sala de espera, despojados, estavam os corpos cansados daqueles que foram apanhados de surpresa, na sua maioria campesinos, as suas mantas multicolores que servem de alforges pareciam desmaiadas, mais sujas, mais tristes, as crianças deambulavam como se estivessem perdidas, presas, longe das suas casas, das suas montanhas, das suas vidas inocentes, um grupo de mochileiros franceses jogava às cartas. Tinham todos vindo à cidade que os fez reféns sem aviso prévio, e muitos sem dinheiro, sem comida nem hora marcada para o regresso olhavam o vazio com olhar impotente. Os mochileiros encolhiam os ombros e imaginavam as palavras ampliadas com que descreveriam este evento nas suas viagens quando estivessem de regresso ao mundo confortável das suas outras vidas.





Vim a pensar no caminho de regresso a casa que país era este onde o bloqueio é a forma oficial de protesto? Evo Morales, o actual presidente, encabeçou muitos antes de estar do outro lado do poder, é inevitável que não pense algumas vezes que bebe do seu próprio veneno quando o país soluça eternamente sem nunca poder avançar nos dias perdidos de bloqueios. Em Sucre, capital constitucional do país onde se senta a Corte Suprema de Justiça, mais uma das coisas que teima em não entrar na minha geografia cerebral, a existência de duas capitais num mesmo país, La Paz sendo por sua vez a capital administrativa e onde efectivamente todas as embaixadas e sedes de governo estão sediadas. Bloqueios de um passado recente que escalaram a actos de violência foram justificados à custa de se discordar da localização das capitais. Paro para ler as notìcias de um jornal local: "Não reconhecemos a governadora traidora e instruímos nossos afiliados a não permitirem que nem ela e nem seus funcionários entrem em nenhuma das dez províncias do departamento; exigimos um aprofundamento da autonomia e não paramos o bloqueio enquanto esta não nos for concedida". Declaracoes de um dirigente campesino como justificação. Lembrei-me dos olhares lúgubres e perdidos das mulheres no terminal de autocarro as suas tranças negras poisadas sobre os ombros como lágrimas escuras, cansadas. As crianças que brincavam sem vontade e os homens que olhavam as mãos sem poderem agarrar os instrumentos à custa dos quais vem o seu sustento. Não são eles também campesinos? Num outro dia em que tinha ido ao terminal escutei alguém dizer que não ia esperar mais já tinha marcado um voo, as suas roupas ocidentais denunciavam os verdadeiros afectados pelo bloqueio - os campesinos. A classe alta terá sempre a oportunidade de apanhar um avião ou dar mais 10 bolivianos por meio quilo de carne. Um campesino não. E eis o remoinho de contradições que aos meus olhos, olhos de viajante, me é dado a entender - um bloqueio feito por campesinos que afecta sobretudo os próprios campesinos. Pus a chave na porta de casa, senti que ia ter que repetir aquele gesto muitas vezes porque as leis não se mudam de um dia para o outro e não me parecia que as partes envolvidas estivessem interessadas em ceder. A ironia das circunstancias era incontornavel, tinha tecto e comida, sempre tive! Os dias podiam transformar-se em semanas, estava em casa de uma amiga, amiga essa a quem os bloqueios não seriam mais do que um incómodo na sua rotina e um aumento suportável no seu orçamento domestico. Mas o que será necessário fazer para que aqueles que não podem e não têm, não estejam eternamente condenados a não poder e a não ter?



Sozinha de regresso a Bolívia

Depois de uma viagem de 5 horas que deveria ter sido uma viagem de 3 sai atordoada do autocarro no terminal fronteiriço de La Quiaca na Argentina. E certo que as viagens de autocarro me deixam refilona mas não me parece normal que se viaje em transporte publico esperando que este te deixe à porta de casa. A cada 10 minutos havia gente que entrava ou saia do autocarro a medida da proximidade dos seus lares, e isto numa viagem onde supostamente o autocarro parava apenas em três aldeias.Seria interessante ir de Lisboa ao Porto no expresso e pedir ao condutor "olhe deixe-me aqui que a minha casa e já ali a frente". Pedalar os 4 quilómetros que unem La Quiaca a Vilazon do outro lado na fronteira na Bolívia sozinha foi uma experiência curta mas interessante. Inevitavelmente eu era o centro para onde os olhares curiosos convergiam - uma mulher com uma bicicleta carregada e sem companheiro a vista constituiria sem duvida o ponto alto das coisas a observar naquelas paragens e um ou outro elemento do sexo oposto tentou a sua sorte em forma de oferecimento da sua prestável ajuda - mas não, não era necessária obrigada, afinal para pedalar uma bicicleta só são necessárias duas pernas e consequentemente uma pessoa - eu! De qualquer forma não deixo de admitir que ser mulher e viajante a solo tenha as suas vantagens, só assim explico ter o passaporte carimbado nos serviços fronteiriços Bolivianos por mais três meses, depois de uma conversa curta mas agradável com o oficial de serviço e, o Nuno, uns dias depois noutra fronteira, só por um mês, mesmo depois de ter explicado ao oficial que estava a viajar em bicicleta e necessitava de mais tempo.




Como aprecio viajar em bicicleta. A liberdade, o espaço...sentada no chão do terminal de Vilazon olho para o estado deteriorado de mais um autocarro onde terei que passar as próximas 13 horas e os cerca de 400 quilómetros. Com a inflação horária que parece afectar os transportes públicos em geral na América Latina, quantas horas serão na realidade? 16, é a resposta. O autocarro vai cheio. As gentes do altiplano Boliviano preenchem os assentos com os seus cobertores sintéticos com tigres estampados ou outra qualquer iconografia que confirma que o negócio dos cobertores feitos na China há muito canibalizou as mantas feitas em la pura de alpaca Andina dos tempos idos. No porta bagagens não cabe mais nada, mas continuam a chegar mulheres pequeninas de saias bojudas com sacos e mantas recheadas com coisas que parecem ser suficientes para montar um acampamento para um exército. Puxa-se a pequena escada que dá acesso ao tejadilho do velho veículo e tudo se acomoda. A saída é pontual e ao cair da noite passam na moldura da minha janela as montanhas suaves do altiplano e o pôr do sol rosado que me tinha apaixonado no sudoeste Boliviano, estou de regresso, sinto-me estranhamente como se estivesse em casa. Embalada pela música Boliviana e os solavancos das estradas ripiadas adormeço. A lua ilumina o contorno dos vales e serras, e desperto ao som de marteladas metálicas, o autocarro não está em movimento, tento localizar-me geograficamente mas é impossível, na Bolívia não é necessário muito para que nos sintamos no meio do nada, e era no meio do nada onde estava, dentro de um autocarro avariado. Volto a adormecer e passado um tempo que não consigo calcular sinto que estamos de novo em movimento. Por mais uma serie de vezes o ritual repetiu-se: paragem, marteladas metálicas, vozes masculinas e o veículo volta de novo a mover-se. Tento definir a paisagem que atravessamos naquela noite clara e vejo ravinas e precipícios ladeando a estrada, não existe qualquer tipo de marcação só o branco do ripio que desaparece ao virar de cada curva, fecho a cortina. O que quer que seja o problema que afecta o autocarro espero que não seja de travões. As 6 da manha chegamos a Potosi, e de luzes ligadas sem pré-aviso ou tempo para despertar somos avisados que devido a problemas na embraiagem temos que mudar de autocarro. Os protestos dos viajantes são inúteis. Asseguro-me que a minha fiel companheira segue comigo no mesmo transporte e pouco tempo tempo depois estamos de volta à estrada. Potosi, a cidade que nos tempos coloniais foi um dos motores económicos do império espanhol, das entranhas da qual se retirava a prata que sustentava a Diáspora e as ambições expansionistas ibéricas, fica para trás. Cheguei ás 8 da manhã a Sucre, uma cidade que me fez lembrar Évora, com as suas igrejas e monumentos pintados de branco. Património da Humanidade, Sucre é considerada por muitos como o epicentro do qual irradiou a campanha de independência do jugo espanhol na América Latina. O primeiro "Grito Libertário" deu-se em 1809, mas ironicamente a Bolívia foi o ultimo território a ganhar a independência em 1895.







Dolly, uma mulher especial


Cheguei a Sucre e nesse mesmo dia e como uma nuvem cinzenta inesperada sob um dia de sol, deu-se o bloqueio. Tinha sido um grande desvio solitário para Norte. Tinha perdido o meu cartão multibanco em Oruro, e andava a viajar ás custas do Nuno, desejava com urgência pôr as contas em dia e não queria arriscar ter o cartão enviado para algum local e ele desaparecer, como havia acontecido no passado. Nos nossos planos originais tínhamos pensado voltar a La Paz para descer a "carretera de la muerte" até ás Yungas e daí pedalarmos até Trinidad para construirmos um barco adaptado às bicicletas e navegarmos o Rio Mamoré até ao Brasil, e por isso Sucre estava na rota. Mas os planos mudaram porque o tempo e o dinheiro, sobretudo desde que tinha tomado a difícil decisão de estar em casa pelo natal, eram limitados, de forma que o autocarro que me levaria cerca de 600 quilómetros para Norte de Jujuy, evitando distâncias dispensáveis de estradas aborrecidas de tráfego intenso, sem bermas, vento contra que pareciam ser o único tipo de estradas existentes na Argentina. Ganharia assim uns dias para desfrutar o cicloturismo em passagens mais favoráveis, claro, isto antes de saber que iriam haver bloqueios que me paralisariam os movimentos por mais dias do que os esperados.

A Dolly e uma mulher pequena e atraente que concentra dentro do seu corpo energia que irradia e transborda, os seus olhos castanhos rasgados parecem ter o mesmo brilho e a vitalidade que teriam quando eram adolescentes. E irmã da Wilma, a amiga que conheci em El Alto, La Paz e na casa da qual tinha passado uns dias, parece-se muito com ela mas tem a força da vida vivida em função dos seus desejos. Para os padrões da mulher Boliviana, Dolly é uma pedra preciosa e rara. Desde muito cedo decidiu viver a vida como lhe parecesse melhor, mesmo que nem sempre fosse assim. Tirou um curso universitário no tempo em que as mulheres pertenciam aos homens com quem se casassem. Casou com o homem que escolheu e descasou por se ter desiludido com ele e com o casamento, partiu o coração a muitos homens e teve o coração partido, mas nunca deixou de ser independente e de fazer as coisas por vontade própria. Viajou e viveu em várias partes da Bolívia e trabalha agora como responsável financeira de uma ONG que incentiva as mulheres de Sucre a obterem formação em trabalhos técnicos desempenhados maioritariamente por homens, como carpintaria, ferraria e outras profissões. Este projecto tem sido um sucesso, porque as jovens aprendem a trabalhar por conta própria, a serem independentes e aos poucos as barreiras do preconceito numa sociedade onde a cultura do "macho" domina vão sendo derrubadas. Partilhamos conversas e cumplicidades femininas, seriam talvez duas gerações que nos separavam mas tínhamos muito em comum - o sermos mulheres, o não caminharmos por caminhos definidos por outros, por escutarmos o que vem de dentro de nós para traçarmos as nossas rotas. E num país tão politizado como a Bolívia em que um campesino no meio da montanha perdida te pergunta se és a favor ou contra Evo Morales, o presidente indígena, a politica foi, como não podia deixar de ser, um dos temas fortes das nossas discussões. Dolly votou por Evo, queria mudança, mas como em tudo onde se depositam grandes expectativas, e sobretudo no que toca a politica, a tendência é para se terem grandes decepções. O governo de Evo não dirige sem uma boa dose de contradições, os tempos que se vivem são tão incertos que se houvesse uma guerra cívil, isso não seria surpresa para ninguém! Sucre tem sido palco de violentas manifestações, a casa do reitor da principal universidade foi invadida e assaltada por estudantes sob o olhar impotente da policia que não age nem exerce a força com receio de retaliações, durante os dias que ali estive até que desbloqueassem o bloqueio. Algumas semanas antes haviam humilhado e agredido campesinos em público, um escândalo denunciado pela imprensa nacional que passou impunemente nas mãos das autoridades. A Bolívia está à beira da guerra civil. Ninguém parece entender-se ou desejar entender-se. Existem demasiadas discordias étnicas e raciais em rota de colisão com os interesses políticos e económicos. Haverao concerteza grandes convulsoes antes do pais poder caminhar rumo a um futuro mais sustentavel.



Santa Cruz de la Sierra - a caminho do Nuno

Estava a actualizar o meu blog, o que decidi fazer durante o tempo que estivesse em Sucre evitando o centro da cidade porque a qualquer momento poderiam haver manifestacoes que descambassem em violência, quando vi um autocarro passar, e outro, e outro. Paguei a Internet apressada e corri como uma louca rua abaixo em direcção ao terminal dos autocarros. Inesperadamente os dirigentes campesinos tinham levantado o bloqueio, não porque se houvesse chegado a acordo mas porque as imagens que tinham visto dos campesinos sem dinheiro e sem comida a espera de regressarem a casa os tinha levado a levantar o bloqueio por um curto espaço de tempo. Já havia perdido o ultimo autocarro para Santa Cruz, onde o Nuno me aguardava, mas garantiram-me que no dia seguinte não haveria bloqueio. Podia finalmente seguir.

Tinham sido uns dias estranhos, tinha voltado a viver uma vida quase rotineira, a viver debaixo de um tecto, a cozinhar almoço e jantar, a tomar banhos diariamente, a ver televisão, mas dentro daquela aparente normalidade não deixava de sentir que as razões que a causavam eram tudo menos convencionais. Almocei com a Dolly e prometi que nos veríamos em breve, como faço com todos aqueles a quem quero muito e dos quais me é difícil despedir.

Ia a caminho do Nuno, a caminho das terras baixas, a caminho do calor, seria o derradeiro adeus aos Andes, infelizmente feito dentro de mais um autocarro. A noite, desta vez sem luz e escura para iluminar a transição das montanhas secas para as encostas verdes das Yungas. Toco o vidro do autocarro com um misto de saudade e tristeza como que querendo acariciar aquelas serras uma ultima vez. Digo baixinho - até breve! E por certo ali voltarei um dia!


Acompanhem as aventuras do Nuno em http://www.ontheroad.eu.com/

Chile, San Pedro de Atacama e Argentina, Tilcara - os planos mudam e voltam a mudar

Parabéns a você em San Pedro de Atacama!


Parabéns frios mas felizes nos meus 30 anos de vida!


Com delicadeza pus no garfo, prateado e sólido, um pedaço de pimento vermelho assado, outro de queijo camembert, um outro com um cogumelo selvagem e na ponta umas tiras de cebola caramelizada. Como se tratava de um verdadeiro acto solene, aproximei aquela união de ingredientes da minha boca, fechei os olhos, e deixei o calor do pimento, os odores adocicados da cebola, e o cheiro ácido cremoso do queijo, entiçarem o meu nostrilis. Depois, num movimento em câmera lenta, pus na boca aquele arco-íris de sabores que se difundiu pelas minhas papilas gustativas como os ventos da primavera espalhando flores pelas ruas. Tinha diante de mim a mais deliciosa tábua de queijos, originalmente preparada numa combinação de pimento assado na brasa, amêndoas, nozes, pinhões, cebola caramelizada, vários tipos de cogumelos selvagens simplesmente salteados em muito bom azeite e, como não podia deixar de ser, uma boa selecção de queijos europeus. Do lado direito, em frente ao meu prato de cerâmica fina, um grande copo de vidro transparente que emitia uma luz vermelha escura como se fosse um rubi gigante, o precioso sangue da terra, o vinho!

Dentro daquela redoma de conforto e sofisticação, o altiplano estava distante; distante com a sua ausência de comida, de luxo, de calor. Com os contratempos dos dias anteriores tínhamos conseguido libertar-nos do frio e da dureza a tempo para celebrar o meu 30º. aniversário, no dia 22 de Julho. Nesse mesmo dia havíamos saído de Laguna Verde rumo a Hito Cajon, a fronteira da Bolívia com o Chile. Eram só cerca de 12 quilómetros, mas as subidas e o vento frio continuavam. Com o selo de saída carimbado e estrada pavimentada do outro lado da fronteira seguimos montanha abaixo, num vertiginoso downhill que me obrigava a parar com frequência para aquecer os meus dedos que congelavam a cada 10 minutos.




Descemos dos 4600 aos 2527 metros com o Deserto de Atacama à nossa frente. - uma paisagem avermelhada, desolada rodeada por grandes vulcões, semelhante às imagens da NASA do Planeta Marte; E com o aproximar a altitudes mais terrenas, o Atacama, o maior deserto do mundo, enviava desde as suas areias e extensões rochosas lunares as primeiras lufadas de ar quente que sentíamos em muitos meses.

Adeus Bolivia, adeus frio! Pelo menos por uns dias.





Quando cheguei a San Pedro de Atacama senti, como já tinha sentido algumas vezes nesta viagem, que havia chegado ali 20 anos tarde demais. As casas de adobe caiadas de branco, os muros sobreados com formas geométricas, a harmonia entre a tradicional forma de construir casas à maneira colonial e os aspectos decorativos figurativos da cultura Atacamenha estavam presentes em toda a arquitectura, agora, meticulosamente preservada para atrair turistas. E é de turistas que esta pequena vila, de cerca de 2800 habitantes, vive. Tudo o que nela existe serve apenas um propósito: satisfazer as necessidades de viajantes nacionais e estrangeiros que infelizmente eram bastantes no dia em que lá chegamos e durante o tempo que lá estivemos – chegávamos a San Pedro na época alta.





Levou-nos mais de duas horas a encontrar alojamento que estava ou cheio ou era proibitivamente caro. No cansaço cedemos à realidade de que se queríamos ficar debaixo de um tecto teríamos que esquecer-nos dos preços Bolivianos. Ficámos na simpática e recém decorada Residencial Cruz de Atacama, com casa de banho privada que emanava cheiro a pinho, imaculadamente limpa e onde havia um chuveiro operado por esquentador com água quente 24 horas. Devo admitir que as primeiras vezes que tocava nas torneiras metálicas o fazia de forma rápida, o meu instinto ainda enviava mensagens ao meu cérebro de que ali podia apanhar choques eléctricos; os lençóis eram coloridos sem remendos ou gastos do uso, o colchão duro e novo. Verdadeiros luxos para dois ciclistas que nos últimos meses se tinham transformado em verdadeiros vagabundos.

A igreja de San Pedro de Atacama, com a sua arquitectura típica, uma mistura entre elementos coloniais e elementos da cultura atacamenha.

Depois de um bom duche saímos, a cheirar a shampoo e a sabonete, em busca de um restaurante, o Nuno ia-me oferecer o jantar. La Estaka foi o restaurante que escolhi, era acolhedor com uma lareira que difundia os cheiros a madeira queimada que se misturavam com os ricos aromas vindos da cozinha. As suas paredes estavam preenchidas com grandes pinturas e tapeçarias abstractas de cores ocres e vivas, e todo o local tinha um ar rústico sofisticado. Qualquer sítio em San Pedro de Atacama parece saído de uma revista de decoração de interiores, os objectos campestres sabiamente reinterpretados para proporcionar conforto e utilidade. Quando vi os talheres brilhantes, o copo de vinho, o guardanapo de pano, cheguei a temer ter-me esquecido de como utilizá-los, mas à medida que a comida ia proporcionando aos meus sentidos um verdadeiro festim, os meus braços articulavam-se com a minha boca em movimentos coordenados e correctos – afinal ainda sabia comer com garfo e faca.

Fomos beber uma terceira garrafa de vinho a um bar cool onde jovens viajantes dançavam ao som da house music sob o céu escuro penhado de estrelas. Havia um pátio com uma fogueira e sentámo-nos de garrafa na mão falando das próximas viagens que faríamos na companhia um do outro e do regresso à outra realidade. Éramos dois seres com uma paixão comum – as viagens, e já que vínhamos sobrevivendo sem escaramuças de maior a uma convivência inevitável de 24 horas, o mundo seria o nosso limite!

Sentia-me feliz. Há uns anos atrás havia comentado com alguém que celebraria os meus 30 anos num país distante, que estaria a viajar, e embora nessa altura isso me parecesse um sonho remoto, difícil de alcançar, nessa noite confirmei duas coisas importantes: que os sonhos têm muita força e que fazer 30 anos não custa nada quando concretizas os projectos de vida a que te propões!

De volta ao altiplano – Do Chile para a Argentina pelo Passe de Jama

Ali estávamos de novo, o frio que nos obrigou a por sobre o corpo mais de quatro camadas de roupa, o vento que nos embalava as bicicletas, umas vezes, empurrando-as, e outras, obrigando-nos a pedalar com esforço acrescido. E o silêncio e a ausência de presença humana. Mas havia uma coisa significantemente distinta no altiplano Chileno e Argentino – a estrada, que era alcatroada e a uma altitude sempre acima dos 4000 metros.

O altiplano Chileno, as suas paisagens lunares, mas com estradas fabulosas...

Ainda andávamos no altiplano Boliviano quando comecei a pensar que estando tão perto do Chile seria uma pena não conhecer o país mesmo que fosse na ponta tão desolada que equivale ao seu deserto gigante. Mas como sair do Chile sem ter que voltar às estradas tortuosas da Bolívia? – Entrando pela a Argentina. E foi o que acabámos por fazer. Uma semana em San Pedro de Atacama que incluiu uma visita à cidade de Calama, uma cidade mineira metida também no meio do deserto. Ali queríamos experienciar um pouco do que é o Chile não turístico, mas acabamos por visitar aquela que é provavelmente a cidade Chilena mais feia.

Do Chile ficou a impressão de um país extremamente desenvolvido e organizado, os rasgos latinos desta sociedade foram aparados com anos de ditadura, e este povo é agora um povo cheio de regras e proibições de fazer inveja a qualquer país do Norte da Europa. Sente-se um ar de bonança, de que a economia está saudável. Mas não é necessário ser perito em coisas de dinheiro para saber que essa riqueza provém sobretudo, da exploração, na opinião de muitos, descomensurada e totalmente insustentável dos seus recursos naturais.



Na parte que corresponde ao altiplano Chileno, faixa de terra salpicada de vulcões onde não vive vivalma, habitam, há milénios, rochas gigantes perfurando as densas areias que as rodeiam. Foram cuspidas certamente pelos muitos cones, em tempos fumegantes, circundantes e dão ao cenário o característico aspecto doutro mundo. E a cada quilómetro que avançamos avistamos vicunhas, os eternos lagos de águas azuis e margens brancas de sedimentos salinos. Os desníveis da estrada atestam que realmente só os Bolivianos constroem estradas ridiculamente inclinadas a altitudes acima dos 4000 metros, porque seria impossível para os vários camiões que fazem a travessia daquelas terras em direcção ao Atlântico e ao Pacífico enfrentar aquelas montanhas de forma diferente. As nossas pernas agradeceram.



Vicunhas



Chegamos a Paso de Jama, esperávamos uma subida de cerca de 400 metros, mas a informação no guia vinha incorrecta e subimos apenas cerca de 100 metros. Ali estavam: mais duas placas, mais uma fronteira, mais uma linha imaginária. De um lado o frio altiplano e do outro, mais frio altiplano com mais de 100 quilómetros até à próxima aldeia – Susques.

Passo de Jama, fronteira Norte do Chile com a Argentina

Humahuaca - as montanhas arco-íris da Argentina




Susques na Argentina parece uma aldeia Boliviana tocada pela ordem e a limpeza. Tem uma igreja bonita de paredes grossas e telhado de palha. A sua rua principal recebe a sombra das árvores que a percorrem. Encontrámos alojamento numa das ruas traseiras da aldeia e a dona da residencial olhou-nos com um ar ofendido quando lhe perguntámos se havia água quente nos duches. Estávamos de regresso à realidade dos países onde água quente, electricidade e aquecimento são condições mínimas para se ter uma residencial aberta, não os extra, pelos quais se tem que pagar mais, e isto claro, quando existentes. Mas os traços das gentes daquela aldeia eram certamente familiares, os Andes distribuíram pelas suas montanhas gentes de estatura baixa, pele castanha, cabelos negros esguios e olhos rasgados e isso as fronteiras não conseguiram dividir.

Susques e a sua bonita igreja

Os primeiros avistamentos das montanhas de várias cores.

Seguíamos nas montanhas mas a paisagem desértica altiplânica começava a dar lugar a montanhas de sedimentos estratificados dos quais se distinguiam diferentes cores. Devia ser fim de semana porque se viam muitos carros de domingueiros nas estradas. Depois de passar por uma vasta pampa onde acampámos, atravessámos as Salinas Grandes, um salar Argentino que se encontra a cerca de 3400 metros, e começámos a subida que nos levaria ao passe Abra Porterillos acima dos 4100 metros. A subida decorria a bom passo, curva após curva, mas depois de ladearmos a primeira montanha na sua parte baixa, uma visão assustadora impô-se – tal qual uma jibóia infinita, tínhamos à nossa frente uma estrada que subia toda a encosta da montanha em curvas e contra curvas que mais se assemelhavam a uma montanha russa. Fiquei sem fôlego só de olhar a subida que nos aguardava.





Comemos alguns frutos secos, bolachas, bebemos água e apostamos quanto tempo demoraríamos a terminar a árdua tarefa de subir aquela montanha. A tortura demorou cerca de uma hora, e a coisa foi um pouco bizarra, entre aplausos dos viajantes, os apitos dos camionistas, ás mãos na boca de uma passageira de um carro incrédula por ver dois ciclistas carregados a empreender tão vertiginosa subida, sentíamo-nos como se estivéssemos a participar na Volta à França. E se realmente já estávamos acostumados ao ocasional apito, que nem sempre se distinguia entre a saudação e o “sai da frente que estás a ocupar a minha estrada”, o pessoal que passava naquela estrada ou estava muito aborrecido no seu passeio de domingo ou eram realmente apoiantes fervorosos de ciclismo, todos eles.



O Abra Porterillos seria o meu último passe acima dos 4000 metros nesta viagem e não pude deixar de sentir uma certa nostalgia. A minha relação ciclística com as montanhas é uma de amor e ódio, e tudo aquilo que se ama, de uma forma ou de outra, acaba por se sentir falta. Entre o esforço dos músculos, a respiração ofegante e o suor no corpo, ia pensando, como sempre faço, no espetacular que seria descer aquela estrada, mas depois de começar a descida do passe que havia acabado de alcançar percebi que o verdadeiro espetáculo estava nas curvas sinuosas e intermináveis do downhill que começava a fazer. Era o maior de toda a viagem, e sem dúvida, um de elevar os níveis de adrenalina a picos bem altos. O vento soprava forte e as bicicletas pareciam folhas abanando a cada rajada, que ora estava de costas, ora de frente, obrigando-nos a pedalar mesmo durante a descida.



Os carros seguiam alguns, mais lentos do que nós, e as vistas eram tão abismais e tão impressionantes que me via impossibilitada de deixar a bicicleta rolar estrada abaixo, sobre o risco de não desfrutar a paisagem fantástica diante de mim. Entrávamos na Quebrada de Humahuaca, um vale de sedimentos que se acumularam nas camadas dos milénios, e deram a cada estracto uma cor forte e distinta da outra. Os vales eram escarpados, esculpidos, como raízes de uma árvore sem tronco de dimensões descomunais, pelas chuvas e os ventos.

Humahuaca e todo o conjunto de desfiladeiros que a compõem são Património Natural da Humanidade, mas infelizmente, as aldeias, que em tempo seriam pitorescas há umas dezenas de anos atrás, não passam hoje, de circos turísticos, onde tudo é caro e muito pouco é verdadeiramente genuíno. A Praça de Purmamarca, onde ficámos quatro dias, era uma amálgama de mantas, camisolas de lã, tapetes e outra parafernália artesanal igual à que havia visto em La Paz e na realidade um pouco por toda a América do Sul, mas a preços inflaccionados Argentinos. Também o artesanato vai sofrendo os impactos da globalização e vêem ligeiros os dias em que não haverá coisas típicas de parte alguma, só os productos que os turistas estereotipam como sendo tradiccionais de determinada parte, mesmo que não sejam.


De Purmamarca e das suas montanhas de sete cores, que nunca conseguimos fotografar sem apanhar cabos de electricidade, cabeças de outros turistas ou carros – inquestionavelmente um Património Natural rodeado por elementos muito pouco naturais. Pedalámos uns meros 24 quilómetros subindo para Norte para Tilcara. Tilcara era uma vila que embora vivesse sobretudo do turismo tinha alguma personalidade própria, e as várias lojas não dedicadas ao turismo assim o atestavam, como ferrarias, lojas com artigos de costura e papelarias entre outras. Ficámos no parque de campismo El Jardin à beira do rio, e como precisávamos de internet para actualizar os sites, e havia internet em Tilcara, ao contrario de Purmamarca, ali permanecemos por quase uma semana.


Numa das noites em Tilcara fomos jantar a um restaurante ao lado da praça principal supostamente turístico mas com música ao vivo. A comida foi desapontante e cara, mas o entretenimento valeu pelos 100 e tal pesos argentinos que pagámos. Um homem com traços indígenas, alto de pele morena, olhos grandes, com boa constituição óssea e uma barriga dando a crer que fazia mais no restaurante do que entreter os seus clientes, sentou-se no pequeno palco que havia em frente das mesas e com os seus dedos começou a soltar a música que havia dentro da sua viola. A doçura e profundidade da sua voz faziam-me lembrar o Pedro Barroso, mas as canções que cantava e as histórias que contava faziam parte do rico e vasto património oral desta região. O seu sentido de humor era apurado e entre canções, anedoctas e histórias aprendemos mais sobre a região do que lendo a papelada inútil que nos foi dada no posto de turismo. Aquela zona ainda tem fortes ligações com o seu passado indígena e as suas gentes sentem-se mais conectadas com os seus vizinhos do Norte, os Bolivianos, do que os seus conterrâneos Argentinos. As fronteiras são facas de fio aguçado que cortam a terra sem olhar a ela, mas o que a terra cria pelas suas peculiaridades, sejam animais, plantas, pessoas, montanhas, as fronteiras serão só e sempre uma linha artificial e imaginária, porque este planeta foi feito numa só esfera e é um só.



O nosso amigo Chileno, que conhecemos em Tilcara no parque de campismo - Ismael Berwart, cozinhou para nós uma deliciosa pasta com vegetais e natas. Depois de vários anos dedicados ao estudo de algo que nao gostava, Psicologia, Ismael decidiu viajar e conhecer a América do Sul. Depois de nos conhecer decidiu que a América Central seria feita em bicicleta. Boas viagens Amigo!

Ana e Benjamin – dias em Jujuy com uma família muito especial

As ruas de Jujuy

Não conseguíamos decidir o que fazer, tínhamos planos para regressar a La Paz, descer a Coroico pela famosa “Carretera de La Muerte”, ir pela selva até Trinidad e construir um barco adaptado às bicicletas descendo o Mamoré, tributário do Amazonas. O problema é que ia ser uma volta muito grande, de certa forma incerta, já que sendo totalmente inexperientes em matérias de navegação de rios, também não conseguíamos obter informação suficiente para concluir se esta empreitada era realmente possível. Acrescentando a este facto, eu tinha que começar a pensar no meu regresso, já que as minhas finanças só suportariam a minha aventura até ao fim do ano. E com todas estas dúvidas uma coisa era certa, nem eu, nem o Nuno estávamos com muita vontade de voltar ao altiplano, o que seria inevitável caso fossemos de novo para La Paz. De qualquer forma, eu tinha que ir a Sucre, tinha o meu cartão Multibanco em casa de uma amiga e necessitava recolhê-lo.

E no meio da indecisão de voltar a Norte, subindo por uma estrada onde o vento forte nos aguardava ou descer para Sul e adiar a decisão, fomos até Jujuy, 90 quilómetros a Sul de Tilcara, que nos levou uma tarde em bicicleta porque continuávamos a descer e tínhamos o vento a favor.

Depois de uma subida chegámos, como Benjamin nos havia descrito, à frente de uma casa que tinha um velho Land Rover, a julgar pelo seu estado não teria mais destinos a percorrer. À nossa frente e sobre nós, nos degraus e pátio da casa, cães e cachorros ladravam, cumprindo com as suas funções de guarda. Do fundo da rua gritavam vozes de criança enquanto corriam esbaforidas: “é aqui, é aqui! Não se vão embora, estamos à vossa espera!” Em pouco tempo estávamos rodeados por crianças e cães, que agora nos saltavam para cima, suponho que dando-nos as boas vindas, como fazem os cães, depois de entenderem que vínhamos com boas intenções. Tínhamos encontrado a casa de Ana e do Benjamin, mais uma das tantas casas que acolhem cicloturistas, espalhadas pela America Central.

Ana a nossa simpática anfitria em Jujuy

A Ana é uma mulher pequena, os seus olhos castanho claros são como luzes e a sua voz é como a de uma criança inocente, na sua boca desenha-se um sorriso fácil sempre coordenado com o brilho do seu olhar. Apesar do cansaço das últimas semanas de trabalho, Ana abriu os braços e deu-me um longo e apertado abraço quando entrei na sua tipografia, onde havíamos combinado encontrar-nos. Senti que já a conhecia, mesmo com as escassas palavras que havíamos trocado. “Benjamin, anda ver quem chegou! São os ciclistas de Portugal!” O ruído das máquinas de impressão parou e do meio delas saiu um homem. As expressões da sua cara denotavam o cansaço dos últimos dias, mas o calor que vinha das suas palavras e a genuína alegria que transmitiu quando nos viu quebraram de imediato a distância que pudesse haver entre nós. Ana e Benjamim explicaram-nos que estavam num período com muito trabalho, Benjamim tinha sido convidado para ir a Buenos Aires a um festival de teatro e mímica, e tinham que terminar uma empreitada na tipografia antes da sua partida. Há cerca de 20 anos atrás Benjamim percorreu a América do Sul com uma bicicleta carregada com mais de 100 kilos, de apetrechos para fazer rir e emocionar as audiências transeuntes das Américas. Um homem talentoso que construía os seus próprios instrumentos e os tocava, vários ao mesmo tempo, fazia também malabarismos, mímica e teatro. Ana e Benjamin são o tipo de pessoas que parecem abraçar o mundo e os seres que nele vivem, a sua família é composta por sete crianças, muitos cães e todos os viajantes do mundo que passam por Jujuy em duas rodas. Despedimo-nos depois de nos darem indicações de como encontrar a sua casa, onde ficaríamos por uns dias.



O Benjamin

Na pequena casa de Ana e Benjamin estavam, para além das sete crianças e dos muitos cães, dois cicloturistas, O Anthony da França e o Filipe do México. Este par improvável viu-se forçado a uma estadia em Jujuy mais longa do que a desejada: umas semanas antes tinham-se conhecido na estrada a caminho de Jujuy e tinham combinado ir fazer um passeio pela selva da Argentina, que acabou mal quando o Felipe caiu da parede rochosa que escalava partindo os dois pulsos. Via-se agora impossibilitado de seguir a sua viagem rumo ao México (havia começado em Ushuaya) e o Anthony, sentido-se responsável pelo o ocorrido, uma vez que tinha insistido no passeio. E era de facto uma história bizarra, de uma convivência íntima forçada e inevitável; com os dois pulsos partidos e com gesso até quase ao ombro, o Felipe tinha os braços incapacitados e era-lhe impossível fazer as coisas mais básicas como ir à casa de banho e comer, e o Anthony era agora obrigado a efectuar funções de enfermeiro e dar de comer, banho e ajudar o Felipe a fazer as suas necessidades. Eram de facto um duo pouco usual, o Anthony, um mochileiro nos seus vinte e tal anos de vida, que se havia tornado cicloturista há pouco tempo, tinha comprado uma bicicleta em segunda mão no Paraguai e adaptado umas mochilas de criança que vinham ainda com rodinhas ao suporte da sua bicicleta. O Felipe tinha mais já de cinquenta anos, casado e com netos, viajava pela a America do Sul, concretizando um sonho e aproveitando o tempo livre da sua reforma. A sua bicicleta estava bem equipada com peças adequadas à sua aventura. Mas eram um par simpático e no final partilhamos umas boas gargalhadas da caricata situação.


O Felipe

O Anthony



Os planos mudavam, mais uma vez, um dia antes da partida. Não queria fazer as estradas da Argentina. O meu instinto dizia-me que as bermas permaneceriam ausentes e o tráfico de camiões, continuaria pesado, agravando o facto de que a paisagem, depois de termos descido as montanhas, haver perdido todo e qualquer interesse. Ia seguir de autocarro de novo para as montanhas, de volta à Bolívia em direcção a Sucre. O Nuno seguiria na sua burra, rumo a Santa Cruz.

Fizémos um jantar de despedida em Jujuy na casa da Ana e do Benjamin, cozinhámos um esparguete colorido e preparámos uma salada de frutas. A mesa estava cheia, rodeada por amigos. As crianças davam uma energia alegre à casa, o Felipe contava as suas histórias sobre os mal entendidos verbais, que também existem por toda a América Latina, alguns bem curiosos por sinal e o Benjamin tocava as flautas que ele próprio havia feito com pasta de papel ao mesmo tempo que da sua guitarra saiam sons de músicas latinas e andinas. Olhei para a Ana e trocámos um olhar cúmplice. Existem no mundo pessoas muito especiais, que me fazem sentir privilegiada por ter a sorte de as conhecer, e esta família é sem dúvida um exemplo de bondade, alegria e espírito de partilha pouco comum nos dias que correm. As portas da sua casa e os seus braços parecem estar permanentemente abertos para receber e fazer da sua casa um lar para estranhos e viajantes que depois se transformam em amigos.

Com a família Torrejon



Nas próximas aventuras falarei dos meus dias sentindo na pele as consequências da situação instável na Bolívia e as pedaladas pelas terras baixas onde os missionários deixaram há
séculos passados um legado ainda hoje vivo.

E o Nuno tem também uma nova história e fotos no seu site em www.ontheroad.eu.com