Peru, Lima - De Tujillo a Lima. Do caos urbano e do silêncio da natureza intocada

Trujillo

A dor aguda percorreu como um fio invisível a superfície da minha pele espalhando-se como uma mancha de óleo sob a minha anca. Era a ultima injecção de um tratamento doloroso que me havia ancorado forçosamente a cidade de Trujillo por muito mais tempo do que havia desejado. A cidade da praça de arco-íris era um mero sitio de passagem com encantos limitados que se esgotavam depois de três ou quatro dias, e as três semanas que ali acabei por passar revelaram uma cidade vazia em entretenimentos culturais ou outros. Os dias tornaram-se rotineiros e preguiçosos, e o calor asfixiante, que se faz sentir o ano inteiro, entorpeceu o meu corpo e deixou-o num estado de apatia latente.

Explorados os encantos da Plaza de Armas, do complexo arqueológico de Chan Chan e da praia turística de Huanchaco, o trafico obsceno que se fazia sentir, os decibéis de ruído muito mais elevados do que qualquer ouvido humano possa ou deva suportar, a arquitectura pobre e feia e as barracas que vão carcomendo as dunas que rodeiam a cidade, não conseguia motivar-me a gostar daquele sitio.

No dia da partida despertei cedo e cansada. Na noite anterior havíamos celebrado a hospitalidade do Lucho em sua casa, cozinhado Bacalhau a Espanhola e dançado ao som das cumbias improvisadas da sua aparelhagem que depositavam batidas para a rua silenciosa que dava para as traseiras de um cemitério. Eu, o Nuno e o Jeff dançamos ao som daqueles ritmos latinos, que aos poucos se vão apoderando da banda sonora da nossa viagem, e desajeitados, saltamos e pulamos, sob o olhar divertido de Lucho, que fazia de DJ. Penso que a alegria e a espontaneidade da dança vinham também do alivio de saber próxima a partida.

O Lucho acompanhou-nos ate a saída da cidade, mais tarde juntou-se a minha pedalada e de forma simples e sincera perguntou-me como havia sido a minha passagem de criança a adolescente, queria saber como lidar com a sua filha Ângela, a luz da sua vida, que esta a passar por essa fase. Aqueles 10 kilometros iniciais passaram num ápice e ate a subida de 5 kilometros me pareceu um pedaço de estrada plana, na sua companhia. Despedimo-nos no topo da duna, voltávamos ao deserto de Sechura, e aos nossos pés estava já silenciosa e distante a cidade de Trujillo e o mar do Pacifico. Despedi-mo-nos do nosso bom amigo que nos havia acolhido durante aquelas longas semanas, olhei pela ultima vez os seus olhos de criança e o seu sorriso caloroso, e vi-o ir, duna abaixo, de regresso ao caos da sua cidade.

Em frente, o silencio, o amarelo das areias e o azul do pacífico. Um camião passava e interrompia aquela ordem de coisas para voltar a desaparecer na recta interminável de alcatrão que e a Panamericana Norte. Íamos regressar aos Andes, e sair da Panamericana por uma estrada privada de um projecto que mais tarde viemos a saber, ser de irrigação aos mantos verdes que irrompem o deserto. O homem vai provando que já não há muito que não esteja ao seu alcance, e plantar o puro deserto com alcachofras ou espargos e uma delas. Mas esses vegetais refinados são para exportação, não me parece que exista interesse em usar tecnologias tão avançadas para dar de comer aos Peruanos. O choclo - espécie de milho, a batata, a quinua, o camote, e tantos outros vegetais típicos deste pais, ainda se plantam da forma tradicional, pelas encostas das montanhas ou vales dos rios, dependendo sobretudo da mão e forca humana e estando expostos as imprevisibilidades metereológicas.

O silêncio

O calor era tão seco que secava ate os ruídos. Ao pedalar, saídos do alcatrão, ouvia-se o restolhar dos pneus nas pedras da estrada, a nossa respiração e nada mais. O céu azul celeste, os montes avermelhados e amarelados de sedimentos que pareciam em estado de formação, era uma paisagem de transição entre o deserto e as montanhas que se deparavaante os nossos olhos, e a sensação de isolação era libertadora depois de toda a intensidade urbana sentida nas ultimas semanas. Estávamos felizes por regressarmos ao seio da natureza, por nos deixarmos envolver nos seus braços longos e acolhedores, éramos pequenos pontos insignificantes na imensidão.
Por cerca de 300 kilometros seguiríamos o Rio Santa serpenteando as suas margens e percorrendo uma estrada que nos levaria ate Huaraz a porta de entrada para a Cordillera Blanca, que foi considerada por uma sociedade geográfica, como a cordilheira mais bonita do planeta. Não suspeitávamos que nesses cerca de 300 kilometros de percurso a paisagem nos surpreendesse tanto, que parássemos tantas vezes estupefactos com o poder daqueles monumentos naturais que se impunham diante dos nossos olhos.

Pedalávamos no fundo do vale que era caminho de passagem das águas do rio. Ao inicio as margens eram suaves e o rio caudaloso no seu percurso preguiçoso ate ao mar, mas a medida que íamos subindo, os montes transformaram-se em encostas de montanhas vertiginosas de rocha exposta como uma ferida recente, a estrada que percorríamos quasesolitários não mais era do que um fio de cabelo branco esculpido no tronco da montanha, e as águas que acompanhávamos tornavam-se cada vez mais rebeldes, debatendo-se furiosa e ruidosamente com as pedras erochas redondas cinzentas esbranquiçadas que lhe obstruíam a passagem, o som desta batalha era envigorante, e a nossa rota levava-nos no sentido oposto ao desaguar destas águas, rumo ao seu berço.

A pouca actividade humana existente naquelas paragens vinha das carrinhas Toyota que serviam de transporte entre as distantes povoacoes das montanhas, dos camiões carregados com pedras provenientes das minas que ali existiam e a volta das quais pareciam agrupar-se as poucas pessoas que ali viviam. Era uma paisagem desoladora no que diz respeito a existência humana, os olhares dos mineiros que vimos reflectiam a falta de luz que existe nas suas vidas, da dureza física do seu trabalho e da resoluta determinação em conseguir o sustento arrancando do ventre da terra a matéria bruta.

Depois de 4 dias a pedalar na que me parecia ser a mais bela paisagem da minha viagem e nos dias em que estive mais distante da civilização, chegamos a Huallanca uma aldeia que me pareceu quase idílica. Hullanca era sem duvida um oásis no contexto paisagístico das aldeias peruanas, que são na maioria espelhos da pobreza que se vive no pais, com as sua barracas improvisadas e a falta geral de infra-estruturas. Ali as ruas tinham placas com nomes, apresentavam menos lixo do que ecomum e parecia viver-se uma certa ordem e familiaridade. Talvez essa ordem se explique com a presença na aldeia de uma hidroeléctrica explorada por uma empresa Norte Americana. Ao passarmos perto das suas instalacoes podemos ver uma mini-aldeia, com campos desportivos e casas pre-fabricadas muito ordenadas e cuidadas, quem sabe, se seráesse o modelo de inspiração. Seja la o que for encarinhei-me pela aldeia e custou-me partir no dia seguinte.

O Canyon Del Pato

A última parte do nosso percurso ate Huaraz era o único que vinha mencionado no nosso guia Lonely Planet, mas nem assim se viam mais sinais de presença humana. O Canyon Del Pato era a continuação natural do percurso que vínhamos calcorreando com as nossas bicicletas , só que a estrada, que antes ia junto ao leito do rio, afastava-se agora rumo aotopo da montanha proporcionando vistas vertiginosas sob o rio que se via em baixo na sua luta cada vez mais enfurecida com as rochas e pedras. O que mais me impressionou, foram os 37 túneis que que atravessamos, buracos tosco perfurados na vertente das montanhas pelas quais a estrada forcou o seu caminho. E entre a luz do dia luminoso e azul e aquela escuridão, que nem sempre deixava antever o fim do túnel, tive um encontro demasiado próximo com um veiculo queatravessou o túnel a uma velocidade pouco segura e que quase me albarroava a mim e a minha burra. As minhas pernas levaram algum tempo a compor-se do susto e depois daquele evento só queria por-me emestrada segura.

À medida que nos aproximávamos do nosso destino a paisagem foi ganhando presença humana e infelizmente perdendo interesse. Esperávamos ver os cumes nevados que davam tanta fama a cordilheira, mas as nuvens que não víamos há já muito tempo, apresentaram-se ao serviço e serviram de cortina ao espectáculo nevado.

Entre céu cinzento, o ruído das mototaxis e o frio andino - foi assim que chegamos a Caraz uma vila Andina supostamente mais interessante e bonita que Huaraz. Tirando a Plaza de Armas, que tinha de facto algum encanto e um mercado colorido onde finalmente se voltavam a ver os locais nos seus orgulhosos trajes tradicionais, não havia muito mais de encantador naquela vila e partimos rumo a Huaraz. Celebramos o aniversario do Nuno na ainda menos encantadora vila de Carhuaz onde segundo o guia se podia desfrutar uma das mais bonitas Plazas de Armas daquela região. Suponho que gostos não se discutam, mas realmente aquela Plaza de Armas só poderia ser do agrado de um cego!

A celebração do aniversário do Nuno foi modesta, passada na longa espera pela comida. O Nuno decidiu presentear-se com um prato de Porquinho da Índia, ou Cuy, como e conhecido aqui e eu com um prato de algo que já nem me ocorre a memoria. Digamos que o dito Cuy quando chega a tua mesa tem o aspecto de um rato pelado que foi electrocutado com as patas em riste a condizer, não e tão mau como o seu aspecto, mas a parca carne que o constitui, não vale o esforço para o seu consumo. Voltamos ao quarto do hostal com uma garrafa de rum e ali passamos a noite chuvosa a conversa e a escutar musica ate que que nos desse o sono. Despertamos no dia seguinte e seguimos na ultima etapa debaixo dechuva ate Huaraz.

De volta ao caos - De Huaraz a Lima

Huaraz conseguiu ser um sitio mais feio do que o imaginado nas minhas piores expectativas. E a Meca onde se organizam as aventuras ao coração da natureza Andina, mas aquela cidade com um passado recente tocado pela catástrofe (um tremor de terra em 1970 que quase destruiu toda a cidade) não tem absolutamente nenhum enquadramento com a paisagem pristina que a rodeia.

Encontrámos um bom alojamento, longe do caos do centro, Caroline Lodge, e ali ficamos a fazer o actualização dos respectivos websites e a organizar as próximas etapas que iríamos percorrer separados. Eu ia rumo a Ayacucho via Lima para fazer trabalho voluntário num orfanato. Infelizmente teria de fazer este percurso em autocarro porque não me restava mais tempo para chegar a Ayacucho, e o Nuno iria acompanhar-me ate Lima e regressar a Huaraz, para comprar a sua nova maquina fotográfica e assegurar-se que nada de mal me aconteceria na não tão segura capital.

Nem os autocarros mais luxuosos do pais evitaram que o jantar acabasse num saco de vomitado. Enquanto o Nuno dormia eu ia desafiando as vontades evasivas do meu estômago curva após curva, mas o inevitável acabou por acontecer, e eu amaldiçoava a sorte de ter que viajar em autocarro em vez da minha comfortavel burra. Chegamos ao amanhecer a Lima e o calmo despertar da cidade escondia as verdadeiras dimensões daquela mega capital. Chegamos a Plaza de Armas cerca das 7 da manha e não havia alma viva por ali. Cansados e com fome queríamos comer algo e deitar-nos ao sol mas acabamos por deambular por horas a espera que algum estabelecimento abrisse. E sem sorte de sonhos solarengos porque no Peru os jardins são guardados com uma zelo inusitado e a relva serve meramente para fins decorativos, ai daquele que ousar usufrui-la horizontalmente.

Passamos a tarde na zona comercial da cidade e a noite decidimos ir ver um espectáculo de luz, som e agua, altamente recomendado pelo guia que obtivemos no posto de turismo. O Percurso da Agua, era de facto uma atracção com algum interesse - num parque da cidade instalaram um conjunto de fontes luminosas e orquestraram um espetaculo de luz e som de pura propaganda politica e de orgulho patriótico. Ali estivemos entretidos por algumas horas, quase esquecendo que estávamos num dos países mais pobres da América do Sul. Em Lima parece concentrar-se todo o investimento do capital produzido neste pais, e uma cidade moderna e cosmopolita com todas as facilidades de uma cidade contemporânea, mas as vezes e difícil entender como e que esta cidade pode ser a capital e representar um pais que parece ser ainda tão rural. Ao regressarmos ao terminal do autocarro ao inicio da noite as ruas que de manha pareciam ser apenas ruas de armazéns e terminais de transporte das varias companhias, transformaram-se no cenário principal para a cena da prostituição masculina da cidade. Assim são os contrastes da realidade, num momento o total isolamento abraçados pela mais intima e intocada natureza e depois no mais caótico dos enquadramentos criados pela mão humana.

Acompanhem as minhas aventuras no website do Nuno em http://www.ontheroad.eu.com/

Peru, Lima 15 de Março de 2008
Joana Oliveira