Peru, Puno e Bolívia, Oruro - De Cusco a Oruro E A Travessia da Fronteira Mais Esperada

El Alto - A cidade do sonho campesino ou o meu pior pesadelo



As buzinas dos carros soavam como hienas furiosas. À minha frente pára, vinda do nada, uma combi (transporte colectivo local), de onde saem mais pessoas do que as que parecia ser possível caberem lá dentro. Desvio-me mas do meu lado esquerdo há filas de carros e camiões emitindo nuvens de fumo preto para uma atmosfera já bastante carregada. As pessoas atravessam-se à minha frente como se eu fosse invisível. Por cima da minha cabeça, letreiros suspensos, anunciando as coisas mais díspares como cabeleireiros, empresas de transporte, universidades...e aqueles que não contam com ajuda de letreiros para anunciar os seus negócios, fazem-no a voz bem alta, gritando preço de transportes, pão fresco, fruta, carne, chamadas telefónicas... Há gente sentada no chão vendendo mercadorias baratas chinesas, frutas, ou carne goteando sangue para os passeios, retirando da estrada o pouco espaço de circulação. Cães esfomeados e lixo por todas as partes, e gente, muita gente a andar de um lado para o outro como se não fossem para lado nenhum, mas que cumprissem a função de preencher o espaços vazios daquele caos. El Alto parece uma cidade que nao deveria ser cidade, feita por gente que nao sabe viver numa cidade e que ali foi forçada a viver. Parece uma máquina gigantesca da qual as peças se soltaram e estão desordenadas sem ordem ou sentido!

Havia pedalado mais de 90 quilómetros nesse dia, estava cansada e nada me podia ter preparado ou dado energias para aquela chegada apoteótica a El alto, cidade satélite de La Paz. E se La Paz fosse um olho então El Alto seria a sua sobrancelha, uma sobrancelha onde vivem meio milhão de pessoas, na sua maioria campesinos que desistiram da vida no árido altiplano e que descobrem ali, alguns a sua sorte, e outros, como eu, o seu maior pesadelo.




Procurámos alojamento durante duas horas mas estava tudo cheio e o que estava disponível era sub-humano. Nessa noite fizemos a grande extravagância da viagem: alojámo-nos num hotel de 3 estrelas e ficámos numa das suas suites. Levaram-nos a bagagem para o quarto, e ali do quinto andar com vistas panorâmicas sobre a cidade do caos, sentimo-nos como peixes dentro de um aquário, protegidos da realidade da cidade ainda que fazendo parte dela. Ali, ela não nos podia tocar, pelo menos por uma noite. A extravagância não saiu cara, o Hotel Alexander, que se promovia como o melhor hotel da cidade custou-nos uns meros 7 euros cada um, merecía-mos.

Machu Pichu - O relato de um dia feliz



A minha respiração estava ofegante. Subi em menos de uma hora os milhares de degraus íngremes que me levaram até um dos sítios mais bonitos deste planeta - Wayna Pichu, o monte escarpado de Machu Pichu, de onde se desfruta da vista panorâmica das ruínas e do cenário luxuriante que as rodeia. Os turistas começaram a chegar e a sentar-se nas rochas escarpadas à espera que o grande espetáculo começasse. Tudo à volta estava coberto por densa neblina, via-se apenas verde e os grandes precipícios. Como se de um sonho se tratasse, as nuvens começam a mover-se deixando antever as ruínas preguiçosas que se despertavam aos nossos pés. Aahhhh!, ouvia-se um coro de vozes ansiosas, mas logo vinha uma outra nuvem que encobria tudo novamente. A meio da manha o sol impôs a sua presença e as nuvens decidiram revelar o espetáculo pelo qual todos aguardavam - Machu Pichu aos nossos pés!

Íngremes degraus

Eu e o Nuno afastá-mo-nos das multidões e encontrámos um terraço de pedra só para nós onde podíamos em paz usufruir da beleza daquele sítio. Fechei os olhos e pensei em tudo o que tinha já atingido na minha vida. No quão feliz estava. No previligiada que era: estava a viver o meu sonho, viajar o mundo! E nem todos os sonhos que sonhei e concretizei me deram aquilo que deles esperava. Mas viajar, viajar sim é mais do que um sonho é um estado de espírito que me completa e me faz ser quem eu sou, no meu mais verdadeiro eu! No meio das divagações olhei também ao mapa que se desenhava na minha cabeça, nesse mapa via-me a pedalar nas margens do Lago Titicaca, a entrar na Bolívia, a chegar à grande cidade de La Paz...e depois quem sabe, os Salares, o deserto de Atacama, o Chile, a Argentina...

A nossa varanda "privada"

Envolvida por séculos de história, pedras silenciosas, vegetação luxuriante, agradeci à minha mãe por ser a mãe maravilhosa que é, pelo seu apoio incondicional. Ao meu irmão, homem alto de cabelos negros e esguios, amigo de infância e amigo de agora que aceitou emprestar-me dinheiro para que o meu sonho pudesse durar mais uns meses e ao meu pai com o qual não partilho tudo o que desejaria, mas que de igual forma aceitou financiar, a título de empréstimo, mais uns meses da minha viagem.


Descemos os degraus e aos poucos, o fim da tarde foi escondendo as ruínas de Machu Pichu novamente, amanha seria outro dia onde millares de turistas veriam aquela que é, com direito, considerada uma das 7 maravilhas do mundo. Voltámos a Águas Calientes com as pernas cansadas, torturadas de tanto subir e descer, mas com as almas mais preenchidas do que nunca.



Pedalando pelas margens Este do Lago Titicaca e a entrada na Bolivía

Saí de Cusco numa manha chuvosa, um carro quase me abalroava e à bicicleta num cruzamento, quando ia em direcção ao terminal de autocarros. Havia ficado uns dias mais na capital Inca e ia ter com o Nuno a Puno, uma cidade turística nas margens Oeste do Lago Titicaca perto da fronteira com a Bolívia, a minha vontade de deixar o Peru e evitar estradas cheias de tráfico foi mais grande do que pedalar 400 quilómetros de paisagem árida altiplânica.

Puno é uma cidade feia, mas infelizmente, isso era algo a que já estava habituada no Peru, e um pouco por toda a América do Sul, parecia toda feita de adobe, mas isso não lhe engrandecia a beleza. Por se encontrar nas margens do Lago Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo, Puno recebe milhares de turistas todos os dias, mas os atractivos que oferece ao visitante, são realmente limitados.

Decidimos fazer a parte Este do Lago Titicaca. A escassa informação que há sobre essa rota é de que é terra de contrabandistas e de estradas incertas - perfeito! Pelo menos quando a outra opçao significam partilhar a estrada sem bermas com autocarros cheios de turistas e tráfico intenso. Tínhamos programado fazer de barco as aldeias flutuantes, mas acordámos tarde e perdemos o barco. O contratempo acabou por ser favorável, nesse dia havia uma greve nacional que resultou em estradas vazias sem tráfico e na realidade não estávamos tão certos de que seriam assim tão interessantes agora que o único apecto real que têm são turistas e índigenas a vender souvenirs.

As cordilheiras à volta de Lago Titicaca


O Lago Titicaca é um lago de águas azuis, em seu redor o ar é muito puro e por isso podem avistar-se, como se estivessem mesmo ali ao lado, algumas das cordilheiras que o rodeiam e os seus cumes brancos.


Nuno e o Lago Titicaca


Há milhares e milhares de anos, quando as placas ocêanicas colidiram com as continentais formando as cordilheiras andinas (oriental e ocidental) uma grande massa de água elevou-se e ficou presa entre as montanhas criando um lago tão grande como um mar. O Lago Titicaca e todos os outros lagos que se encontram no altiplano Peruano e Boliviano, são o que resta desse lago enorme que foi berço de civilizações. No altiplano os rios e os lagos são sistemas que comunicam entre si, já que as cordilheiras oriental e occidental obstruem a passagem das águas para os oceanos.




Pedalamos passando por pequenas aldeias que ladeiam o grande lago e ao fim do dia acampamos ao seu lado, ouvindo o ruído das pequenas ondas que acariciavam as pedras redondas e pequenas das margens, o céu da noite era azul índigo e via-se o reflexo das estrelas nas águas tranquilas. Eram os nossos últimos dias no Peru, em breve estaríamos na Bolívia, um país que ambos desejávamos descobrir com muita ansiedade.



Puerto Acosta, onde se encontra a linha invisivel que separa o Peru da Bolivia e que dá ao lago Titicaca duas nacionalidades, foi a fronteira mais bonita que atravessei, pode parecer bizarro, porque na realidade as fronteiras são geralmente locais que não reservam grandes atractivos. Mas ali no cimo da montanha com o azul e a imensidão do lago aos meus pés, sem oficiais, sem confusão, o mundo parecia-me um local quase perfeito.Pensei que seria bom se um dia todas as fronteiras do mundo fossem assim.

De La Paz a Oruro

Cholita nas ruas de La Paz


Tínhamos o contacto de um casal que acolhia ciclistas em El Alto, e depois de desfrutarmos da nossa suite no Hotel Alexander, fomos para casa dos amáveis Wilma e Jesus . Em sua casa ficaríamos uns dias enquanto actualizáva-mos sites e conhecíamos La Paz.

La Paz está cravada numa quebrada profunda, rodeada por montanhas de grande altitude. A silhueta do Illimani, grande montanha nevada, por detrás do cenário urbano, é a imagem ícone da cidade. La Paz é a capital de governo da Bolívia mas disputa com Sucre o título de capital do país. É-me pessoalmente difícil compreender qual o estatuto desta cidade, os Bolivianos sao um povo dividido e atormentado por questões políticas e sociais e é curioso ver como esse facto afecta até a decisão consensual para eleger a sua capital.

O Illimani como fundo


La Paz está a 20 minutos de distância de El Alto, mas estão a anos luz uma da outra. La Paz é uma cidade de alguma forma sofisticada com arquitectura colonial e neo-clássica, nas suas ruas há cafés, cinemas, passeios, jardins...as famílias passeiam-se bem vestidas aos fins-de-semana, sente-se uma atmosfera europeia. Mas La Paz está também no altiplano onde habitam os campesinos, que constituem 70 por cento da população Boliviana, e é por isso que em La Paz, no meio de toda a sofisticação citadina, se vêem com as suas tranças negras, saias bojudas, chapéus de coco - as cholitas, ou campesinas, na sua maioria ocupadas a vender artesanato ou algum outro tipo de comércio informal.



Apesar de estarmos a usufruir de alojamento gratuito e da hospitalidade da Wilma e do Jesus, El Alto estava a consumir a nossa paciência, ter de atravessar a cidade para regressar à casa dos nossos anfitriões, lutando contra multidões de gente, barulho insuportável, lixo, era verdadeiramente esgotante. À noite, apesar de estarmos num quarto andar o ruído nao nos deixava descansar. Partimos ao fim de 5 dias rumo a Oruro.

Eu e Wilma

Eu e Jesus

Saída de El Alto




Fizémos 300 quilómetros em tres dias e uma manha, de El Alto a Oruro. Pedalei, pela primeira vez na minha vida, 100 quilómetros num dia. Estava contente e motivada. Sabia que o os próximos meses de ciclismo iriam ser duros, mas esse feito deu-me, de alguna forma, muita energia, para seguir.Sentia-me mais forte do que nunca.

Chegada a Oruro


Oruru é uma cidade mineira, o seu centro é agradável, mas os arredores revelam a realidade da cidade e do país, pobreza e falta de infra-estruturas.


Vista da cidade de Oruro


É também em Oruro que se celebra um dos carnavais mais populares e visitados da América do Sul, uma vez por ano, as ruas cinzentas enchem-se de cor, música, seres da mitologia, e mulheres com as pernas desnudas. Ficámos alojados na Residencial Vergara.

Estátua de uma figura mitológica representada no Carnaval de Oruro

Eu e Juan Carlos



Os filhos dos donos eram jovens médicos com os quais fizemos amizade. Numa das tardes, eu e o Juan Carlos, um dos jovens, fomos de bicicleta ver alguns dos atractivos da cidade, Jua explicou-me o significado das estátuas que encontrámos à entrada da cidade, visitámos uma mina gigantesca de ouro a céu aberto, para esta foi criado um lago artificial utilizado para refrigeração da maquinaria, acabámos o dia a desfrutar o pôr do sol no lago Popóo, onde desagua o rio Desaguadero que está também ligado ao Lago Titicaca, mais um lago dos muitos lagos do altiplano que um dia foram um só.

O lago artificial da grande mina

Eu com o Lago Popóo em pano de fundo


Lago Popóo ao entardecer


As próximas pedaladas levar-nos-iam ao Salar de Coipasa e Uyuni, estávamos ávidos de aventura, e ia-mos ter bem mais do que alguma vez esperaríamos ...mas isso sao outras histórias.

Acompanhem as minhas aventuras no site do Nuno em http://www.ontheroad.eu.com/

Peru, Cusco - De Ayacucho a Cusco. Diário da etapa mais dura da viagem

Dia 1 (10.04.2008)
24.5 quilómetros percorridos, acampamento a 3000 metros de altitude
Ayacucho a perto de Tambillo

Saímos tarde de Ayacucho questionando se partiríamos realmente ou se ficávamos mais um dia. Entre a desculpa de actualizar os sites e a pura preguiça, passar mais do que uma semana num local, deixa o corpo num estado latente de desabituação ao selim e o corpo demasiado acostumado a certos confortos. Mas o trabalho voluntário estava terminado, o site actualizado e não havia como adiar, a mais dura das etapas ia começar, mesmo que tardiamente e já a meio do dia. O alcatrão foi uma miragem que durou poucos quilómetros, na realidade durou poucos metros, os metros onde a cidade de Ayacucho recebe visitantes, tudo o resto é à boa maneira Peruana, de saibro. À saída da cidade apresentou-se uma descida que me pareceu interminável e com bastante inclinação (mal sabia eu o que me esperava), já desabituada das andanças ciclísticas andinas, a minha carga tremia por todo lado no piso irregular. Para o estado precário da estrada o tráfico era abundante, e não faltavam camiões, autocarros e automóveis mais pequenos, as nuvens de poeira acrescentavam partículas ao oxigénio que nenhum pulmão humano consegue processar, mas que inevitavelmente tínhamos que respirar. Ao entardecer encontrámos um bom local para acamparmos, fora do olhar dos muitos veículos que passavam pelo caminho e com o bónus de ter um ribeiro mesmo ao lado. A noite ficou um pouco fresca e sob o olhar atento das estrelas cozinhamos uma salada e uma sopa deliciosa, cheia de carbos e vegetais. Ayacucho via-se já à distancia, no planalto onde se estendem as milhares de construções que a compõem, agora não mais do que milhares de pontos a querer igualar o brilho dos céus nocturnos.

Dia 2 (11.04.2008)
30.4 quilómetros percorridos, acampamento a 3430 metros de altitude
De perto de Tambillo a Chontaca

A saída foi às 11 da manha e como choveu por volta das 6 da manha aproveitamos o facto para nos mantermos no conforto da casa móvel. Não há como negar, somos ciclistas preguiçosos e com maus vicíos: levanta-mo-nos tarde, demoramos horas a preparar o pequeno almoço e a arrumar as trouxas e depois questiona-mo-nos como é que os dias rendem tão pouco. O estado precário da estrada intensifica-se assim como o tráfico e as inclinações. Começo a sentir que a minha inexperiência como ciclista e bttista afectam o meu desempenho, e que as semanas de trabalho voluntário onde me alimentei mal e bebi pior (noitadas regadas com rum barato com os outros voluntários), dão às minhas pernas umas dores, sobretudo quando estou a subir, o que dispensava de bom grado. Almoçamos no fim da subida um "Almuerzo", este consiste numa sopa, invariavelmente igual seja lá a parte do país onde te encontres, semelhante a uma canja e com um pedaço de carne a boiar, e um guisado, invariavelmente de frango (pollo), acompanhado com arroz e lentilhas como segundo. Uma chamada incontrolável da natureza obrigou-me a perguntar pela casa de banho, e felizmente já tinha almoçado, porque os Peruanos parecem desconhecer as vantagens de um autoclismo ou outro sistema de limpeza sanitária. Não sugiro que se chegue ao exagero de ter televisão na casa de banho, mas uma sanita, um autoclismo e algum asseio, são confortos que quando se têm, dificilmente se dispensam. E na verdade, o Peru faz-me sentir como em nenhum outro país - fazer necessidades ao ar livre é na realidade melhor e mais higiénico do que utilizar os denominados "asseos". A paisagem humana começa a cansar, é o segundo dia em que qualquer campesino (e há bastante por estas partes) passa por mim me chama "gringa" e não posso deixar de notar uma certa agressividade nos seus tons de voz. Os declives estão a aumentar, e as estradas a piorar, será mesmo possível que esta seja a única e principal estrada entre Ayacucho e Cusco? O Nuno decide carregar a minha mala cor de laranja onde tenho o meu saco de cama, colchão e botas, são apenas 3 ou quatro quilos a menos, mas parece que fiquei 20 quilos mais leve. Acampámos mais uma vez ao lado de um ribeiro e cozinhei mais um jantar que nos soube bem.

Dia 3 (12.04.2008)
27.2 quilómetros percorridos, acampamento a 3880 metros de altitude
De perto de Chontaca a depois de Matara

Yupee, saída às 9 e meia da manha, não está mal para um par de ciclistas preguiçosos! A estrada continua alternando entre o "mau", o "ainda pior" e o "credo!!! -chamam a isto uma estrada?!!!!". Tivemos uma grande descida e para recompensa, duas grandes subidas. A palavra "gringos" persiste em sair da boca dos campesinos que nos avistam mas parece que neste vale, de forma menos agressiva. Fomos acompanhados no nosso almoço volante pelo Sr. Carlos, que entre outras coisas, nos falou da batalha importante que havia decorrido entre espanhóis e independentistas na montanha que havíamos descido, falou-nos também do seu descontentamento pela exploração de minérios por companhias não nacionais, e dos diferentes vegetais que plantava nos seus campos. A viagem seguiu, e o Nuno levou com torrões de terra que saíram das entranhas dos campos directamente vindas das mãos dos campesinos que ali colhiam batatas. Começamos a sentir que não somos muito bem vindos nestas paragens. A paisagem foi variando, ao inicio do dia um verde seco, depois pela tarde um verde forte de campos cultivados e em flor, e ao fim do dia chegámos à pura Puna onde acampámos com vistas magníficas sob os vales e montanhas circundantes, esta paisagem e quase infértil mas serve de base de cultivo a batatas e de pasto a vacas e outros animais. As casas começam a rarear e as que se avistam são feitas de pedra que lembram as construções medievais. A noite está fria, mas com os céus ali tão próximos as estrelas, irradiam, como sóis distantes, luz que quase parece aquecer.

Dia 4 (13.04.2008)
36.7 quilómetros percorridos, sem ideia da altitude do acampamento
De depois de Matara a depois de Ocros

Saímos às 10 da manha do acampamento e subimos até ao passe usufruindo da Puna que se entendia aos nossos pés. Esperáva-nos uma descida de 60 quilómetros e por momentos pensámos que seria um dia produtivo. Errado! Em estradas de calhau solto, são tão difíceis as subidas, como as descidas - a grande lição que aprendi nesta etapa. A primeira parte desci com grande entusiasmo, a estrada era má, e exigia alguma destreza, mas a maioria das "componentes" da estrada estavam agarradas à estrada. A paisagem era majestosa e o difícil era concentrar-me na condução quando à minha volta se encontravam montanhas deslumbrantes de verde e vales vertiginosos que sabia serem o destino da minha descida. Mas o que no inicio estava agarrado à estrada, transformou-se em saibro solto que dificultava grandemente o equilíbrio da bicicleta carregada. O almoço foi à beira de um ribeiro onde eu aproveitei para lavar umas peças de roupa. A paisagem começa a ficar de novo populada e consequentemente a perder interesse. Em Ocros fazemos compras, e os locais fazem-nos perguntas às quais não nos sentimos confortáveis a responder:" quanto custaram as bicicletas", "porque viajamos há tanto tempo", "porque não vamos de autocarro" etc, e não há muita simpatia nas suas vozes. Temos alguma dificuldade em encontrar um sitio para acampar, mas metidos entre cactos e vacas lá montamos a casa móvel e cozinhamos uma jardineira deliciosa. Acordei o Nuno a meio da noite porque estava a ouvir ruídos estranhos, levantou-se meio a dormir para enfrentar o tirano ladrão que nos rodeava o acampamento, mas era só uma vaca com apetites nocturnos e com uma mandíbula ruidosa.

Dia 5 (14.04.2008)
De perto de Chumbes a antes de Ahuayro, continuo sem saber a altitude a que está o meu acampamento
29.9 quilómetros percorridos

Saímos mais uma vez por volta das 10 da manha e havia tanta vaca perto de nós que se soubesse ordenhar tínhamos bebido leite fresco ao pequeno almoço. A estrada piorou e várias vezes não tive outra alternativa do que deixar cair a bicicleta, para que não caísse também eu naquela estrada de saibro. As curvas cerradas com grande inclinação e o piso irregular da erosão causada pelas chuvas, foram um verdadeiro desafio. Não sentia as minhas mãos de tanto travar. Ao almoço fui devorada por mosquitos, o aproximar das terras baixas trás o calor e a as bichezas voadoras inclementes - as minhas pernas tranformam-se no restaurante da mosquitada e consequentemente nas pernas mais sexys do vale do Rio Pampas, e quando retiro as luvas aprecio também as cores avermelhadas do esforço das travagens na palma das minhas mãos, não posso deixar de me sentir a mulher mais formosa daquelas paragens. É com grande alívio que atravessamos a ponte do rebelde e caudaloso Pampas, e damos como terminada a descida mais tortuosa da viagem (outras nos aguardavam). O Rio Pampas é ladeado por vales secos e quentes, onde se produzem entre outras coisas, bananas e pêras abacates (pautas), um senhor convidou-nos para bebermos mate e para debater ideologias de esquerda, era a favor de Evo Morales e Hugo Chávez, mas não queríamos discutir politicas no meio daquele calor abrasador, e muito menos, voltar a ouvir o mesmo discurso de que o Peru tem muitos recursos e que são as empresas de outros países que exploram tudo e não deixam nada, e consequentemente os causadores dos males do país. Agradecemos o amável mate (chá) e seguimos viagem, rumo ao nosso próximo acampamento. Entre cactos e o rio Pampas, montámos acampamento e cozinhámos com a pouca comida que encontrámos nos alforges, uma sopa de ervilha, uns vegetais secos e farinha de coca. Não foi uma refeição gourmet, nem tão pouco uma das mais deliciosas, mas a vida de ciclista vagabundo é mesmo assim!

Dia 6 (15.04.2008)
De perto de Ahuayro a Chincheros, acampamento a 2780 metros de altitude
24.5 quilómetros percorridos

Acabou-se a descida e gostava de estar feliz pelo facto, mas aguardam-nos quilómetros de dura subida debaixo do sol Andino. Percorremos as poucas mercearias de Ahuayro, uma aldeia pequena e poeirenta, que se resume a uma fila de casas ao longo da estrada, e de meia dúzia de galinhas e porcos deambulantes. As pessoas são simpáticas e e sempre um prazer percorrer as pequenas lojas em busca de mantimentos. Atravesso os meus olhos pelas prateleiras e imagino menus com os poucos ingredientes que avisto. Como posso viver com tão pouco e ser tão feliz? Umas comidas enlatadas, uns vegetais, agua, umas bolachas para adoçar o caminho -são estas as compras que fazem a minha felicidade, resumidas aquilo que necessito para dar energia ao meu corpo. As pessoas ficam sempre surpreendidas quando lhes dizemos que nos dirigimos a Cusco, sabem bem o caminho sinuoso que nos espera e o que já percorremos, e desejam-nos boa viagem. O calor continua, e os mosquitos atraídos por sangue novo, atacam e andam em nuvens debaixo dos meus olhos que necessitam concentrar-se na estrada. Tento afasta-los com a mão, mas e-me necessária para manter a bicicleta no trilho....aaaahhhhh, porque não me deixam em paz e vão picar o Nuno? Ao almoço fazemos um piquenique com um enlatado, parece comida de gato, mas com a maioneze e uma salada de tomate torna-se comestível. Subimos mais um pouco, o sol continua inclemente, e os mosquitos decidiram não arredar pé, mesmo com as quantidades exageradas de creme que é suposto afastá-los que tenho besuntado no corpo e me escorre pela cara abaixo e me faz arder os olhos. Sinto o meu corpo fraco, devo estar com falta de açucar e paramos para comer bolachas e frutos secos, sinto-me um pouco melhor, mas acabamos por ficar na próxima aldeia, Chincheros. Aí alojamo-nos num quarto que mais parece um salão de festas - enorme - o Hotel Ibeth. Vamos jantar a um Chaufa (ou restaurante chinês, que abundam por todo o Peru), um local imundo com serviço à Peruana, ou seja, o menos atencioso possível. Não consigo comer e sinto-me doente, vou para a cama a tremer e passo uma noite com febre e dores de barriga.

Dia 7(16.04.2008)
Chincheros, acampamento a 2780 metros de altitude
Dia na cama, 0 quilometro percorridos

Menos mal que estávamos em "terra", pude curtir o meu mal estar intestinal e o meu estado febril debaixo dos lençóis e com uma casa de banho decente por perto. Nada a assinalar, só que o Nuno teve que fazer de enfermeiro.

Dia 8 (17.04.2008)
De Chincheros a 10 quilómetros depois de Uripa, acampamento a 3650 metros de altitude
20.1 quilómetros percorridos

Dia péssimo, devia ter ficado na cama, mas como o Nuno passa o tempo a repetir que com as médias que fazemos diariamente não chegaremos a Cusco a tempo de renovar os passaportes, decidi desafiar o meu estado frágil. A febre parou apesar das dores de barriga continuarem e como tomei um comprimido para parar a dita, começo a ter cólicas que com o esforço da subida se transformam em picadas insuportáveis que me obrigam a parar a cada instante. A zona que percorremos é muito populada, e a palavra gringa recomeça a sair da boca dos locais como um grito de guerra. O meu ar adoentado não parece desanimar os jovens locais, os piropos a puxar para o ordinário saem-lhe da boca como diarreia verbal, e nem a presença do Nuno os demove, a sua cobardia enoja-me, ficam à espera que passemos, e assim que nos vêem pelas costas começam a disparatar obscenidades, pensando que não os entendemos. Como vinda de de um outro planeta, passa por nós, uma carrinha cheia de gente vestida com os trajes típicos locais, parecem ser de um rancho, ou algo assim. Acenam com as mãos e nem temos tempo de nos voltar a montar nas burras, as pessoas que vinham na carrinha saem lá de dentro a dançar e a cantar e puxam-nos para dentro do seu grupo filmado-nos e obrigando-nos a bailar aquela dança desconhecida. Da mesma forma que apareceram, enfiam-se de volta a seu meio de transporte e desaparecem monte abaixo. Eu e o Nuno olhamos um para o outro incrédulos de que aquela cena se tenha passado.Subimos mais um pouco à procura de local para acampar, mas só encontramos um sitio que apesar de afastado da estrada principal, revelou ser o caminho utilizado pelos campesinos para irem para as suas choças (campos de cultivo) e para levarem os seus animais a pastarem. A noite está fria, a comida não me sabe bem, e as dores de barriga continuam. Melhores dias me aguardam seguramente.

Dia 9 (18.04.2008)
De depois de 10 quilómetros de Uripa a 3 quilómetros de Piscabamba, sem saber a altitude do acampamento
31.6 quilómetros percorridos

O dia despertou com uma cortina de neblina matinal fria. Pelo verde enublado vejo uma silhueta com forma humana e outras em forma de animais...as silhuetas definem-se em homem e o seu rebanho. Saio da tenda para o cumprimentar, a sua simpatia e a sua amabilidade sincera fazem-me esquecer que estou a viajar num país onde o contacto humano pode apresentar tantos desafios. Segue monte acima, e mais tarde avisto um casal de campesinos, com as suas vacas, os seus porcos e os seus cavalos. Param também para nos cumprimentar, e fazer perguntas. Depois de um aperto de mão forte seguem desaparecendo no monte verde. Mais uns quantos pastores e campesinos passariam por nós enquanto fazíamos o pequeno almoço e arrumávamos as coisas para dar inicio a mais um dia de ciclo turismo, e todos eles foram amáveis. Os seus sorrisos, a sua simplicidade, fazem-me desejar que a minha viagem incluísse uns dias a viver com eles, a partilhar a sua existência, a ajudar na lida com os seus animais. Quem sabe, talvez numa outra viagem. Chegamos ao passe onde havia um cruzamento e depois de consultarmos um local, decidimos ir pela esquerda, supostamente a opçao mais curta. O que ainda não sabíamos é que mais curto para um local, não envolve as subidas e as descidas, e acabamos por ir pelo caminho com mais desníveis. Valeu a pena, no entanto, a descida vertiginosa revelou vales e montanhas que rompiam a terra como uma boca cheia de dentes. À medida que descíamos, pequenas aldeias apareciam e desapareciam pelo fio branco que era o caminho que se enrolava pela encosta da montanha. Crianças tímidas corriam ao lado das bicicletas e quando ganhavam coragem pediam-nos dinheiro, "plata, regala-me plata, gringo". São palavras que cansam, são palavras que doem. Porque é que estas crianças pensam que lhe vamos dar dinheiro? Porque é que mendigam? Serao os pais que os encorajam? Não consigo entender. As suas situações de vida são precárias, vivem em extrema pobreza, mas os turistas que por ali passam serão poucos, de onde é que lhes vem o hábito de mendigar aos gringos, já que não o fazem com os locais? Gostava de poder interagir de outra forma com estes seres, mas sinto-me incomodada com o facto de me verem puramente como uma moeda ambulante. E passo por eles sem conseguir esboçar mais do que um sorriso seco e responder "no tiengo plata niño". A meio da tarde dois pontos no caminho transformam-se numa forma familiar - dois ciclo turistas: o Simon e a Britta da Alemanha, um casal simpático. Iniciamos a conversação e acabamos por partilhar o almoço. Contam-nos as suas aventuras na Bolívia, país que adoraram e da sua mais recente aventura a subir e a descer as montanhas que nos levariam até Cusco. É sempre bom conhecer outros ciclistas em viagem porque as experiências são idênticas e há sempre muita informação para partilhar. Tiramos fotos e depois do almoço partimos cada um, em direcções opostas desbravando as montanhas peruanas com as nossas bicicletas. Acampamos a meio de uma subida duríssima, as vistas fabulosas foram a recompensa, mais tarde as nuvens despiram uma cordilheira longínqua e revelaram os seus cumes nevados. Hoje é uma alegria ser ciclista e poder sentir com todos os sentidos as coisas mágicas que existem neste planeta.

Dia 10 (19.04.2008)
De 3 quilómetros de Piscabamba a Andahuaylas, alojamento a 2980 metros de altitude
27 quilómetros percorridos

5 quilómetros em estrada alcatroada, a minha burra desliza com se estivesse sob manteiga, mesmo que a estrada tenha uma ligeira inclinação. Os últimos dias têm sido extremamente duros, estradas impracticáveis, subidas descomunais, o aproximar de uma capital de departamento vai-nos proporcionar outros confortos, hotel com água quente e cama macia, mais escolha nos ingredientes e um pouco de descanço para as pernas. Andahuaylas é mais uma cidade feia, é mais uma cidade caótica e ali passamos uma só noite, no Hotel Adan y Eva, surpreendentemente decente para o preço que pagámos (12.5 soles cada um, o equivalente a 3 euros).

Dia 11 (20.04.2008)
De Andahuaylas a perto de uma aldeia a qual não sei o nome
44.6 quilómetros percorridos

O sol abraça os céus com os seus raios longos e quentes, saímos de Andahuaylas com os alforges bem carregados e passando pelo meio do colorido mercado de domingo. Animais, vegetais, artesanato, gente local vestida no seu melhor fato de domingo e a cheirar a água de colónia. A estrada de alcatrão não dura muito e é substituída por uma estrada com inclinações que nos parecem levar ao céu. O pavimento de terra batida e pedra solta tem uma cortina adormecida de poeira que desperta cada vez que passa um camião, fomos bastante quilómetros a digerir pó, parecia que o domingo era um dia favorito para os condutores de camiões. Chegamos de novo a um cruzamento e cometemos o mesmo erro - seguir indicações dos locais. Era o caminho mais próximo para chegar a Abancay, e os camiões também não o utilizavam, mas havia uma razão para isso, os desníveis brutais, mas disso só viríamos a saber mais tarde. Pedalámos por um vale de pastagens verdes num downhill suave. Sem camiões a estrada em terra batida estava num estado aceitável. De vez em quando escutava-se a palavra “gringo”, na distancia, e sim era para nós, porque não existem muitos loucos que se aventurem por aquelas paragens. Almoçámos ao sol da tarde e começámos uma subida ligeira. Quando chegámos ao passe percebemos porque é que os camiões não iam por aquela estrada. O que era um sobe e desce razoável transformou-se num zig-zague que nos obrigaria a descer até ao vale a dois mil metros abaixo dos nossos pés e nos obrigaria a subir outra vez. Pusemos os casacos e as luvas e começamos mais uma descida vertiginosa que nos levou até um rio, na base de mais uma montanha, onde acampámos e adormecemos ouvido o cantar doce das suas águas.

Dia 12 (21.04.2008)
De perto da aldeia da qual não sei o nome até Huancarama
35.2 quilómetros percorridos

Olho para cima, mais uma subida. Estamos no vale, o local onde as duas montanhas que nos envolvem se unem, e as burras estão preparadas para a ascençao. Conquisto aos poucos mais uma montanha respirando o ar fresco do cenário andino e movendo os músculos endurecidos das minhas pernas. Chegamos ao que parece ser o passe mas ao seguir a estrada a realidade da subida revela-se: temos que voltar a descer para depois voltar a subir e desta vez a subida torna-se num martirío interminável: passamos por uma fila contínua de aldeias e as palavras "gringo" e "plata" ecoam nas encostas, parecem bofetadas auditivas, o suor escorre pelas têmporas abaixo, só mais uma pedalada, só mais um esforço, mas a subida parece não terminar, "gringo", escuta-se mais uma vez. Que vontade de gritar e responder, mas responder o quê? Continuamos a subida e no inicio da tarde atingimos finalmente o passe. Descemos até Huancarama, uma vila com alojamento. Ficamos na Hospedaje Korawiri, um edifício de traços colónias com uma varanda de primeiro andar onde se encontram os quartos e um terraço cheio de batatas. A senhora diz que podemos ver os quartos mas que seguramente não nos vão agradar, vemos os quartos e decidimos ficar, são 6 soles cada um, menos de 1 euro e meio, os lençóis estavam limpos apesar de o plástico que cobria o tecto nos fazer desejar que não chovesse, fizemos uma descoberta que nos fez rir: um penico debaixo da cama, mais tarde, com o frio que fazia e a distância a que a retrete se encontrava, compreendemos que aquele objecto que nos havia parecido obsoleto tinha na realidade as suas vantagens. Partimos em busca de jantar, uma dose de frango frito num restaurante que só de olhar infectava os intestinos, mas era o único sitio aberto e não nos apetecia cozinhar. Sobrevivemos ao restaurante imundo e ao frango frito, e decidimos aliviar o frio da noite com um "calientito", uma bebida vendida ambulantemente, com álcool, ou sem ele, misturado com ervas supostamente medicinais. Naquele bar improvisado no meio da rua encetámos conversa com os locais que nos informaram sobre o estado das estradas que nos esperavam, falaram dos costumes, e das suas vidas. Foi um serão agradável, saímos dali com mais álcool no sangue do que justificava o frio, éramos 6 e cada um pagou uma rodada, e o senhor que vendia as bebidas ia acrescentando generosamente os nossos copos, a pretexto de continuar a tertúlia. O Peru e as suas gentes são assim e é impossível prever quando nos vão tratar bem e ser simpáticos ou quando nos vão gritar "gringo" e pedir "plata", e é isso também que torna as relações entre as pessoas que vamos conhecendo neste país tão erráticas e às vezes tão cansativas emocionalmente.

Dia 13 (22.04.2008)
De Huancarama a Abancay alojamento a 2378 metros de altitude
60.7 quilómetros

A senhora da hospedagem garantiu-nos que não havia quase subida para chegar até à próxima aldeia. Passámos uns minutos antes de partirmos a falar com ela e com o seu marido, havia nos seus olhares, na sua casa, na sua aldeia, uma decadência visível, sinal de melhores tempos que passaram já há muito como as águas de um rio que agora está seco. "Já tivemos a hospedagem cheia, eu tinha dois táxis e uma carrinha, a mercearia estava cheia de produtos, mas os autocarros já não param a noite por aqui, e as poucas economias foram gastas com os estudos dos três filhos, agora não temos nada, só esta hospedagem, até os carros tivemos que vender". Pensei que era triste perder a estabilidade que um dia havia sido a certeza de uma vida, sobretudo quando a energia para trabalhar e produzir começa a esvair-se pelos dedos das mãos. Despedimo-nos daquela aldeia simpática e começámos a subida íngreme que segundo a senhora do hostal era uma estrada plana, já começamos a ficar habituados a estas desinformações, mas é desanimador quando se prepara o corpo para um dia fácil. Depois da subida a descida. 41 quilómetros onde para além da dureza do terreno apanhámos com uma chuvada que nos arruinou o almoço. Veio tão repentinamente que nem tivemos tempo de salvar o café ou a pasta de atum, fico tudo cheio de pedras de granizo e nós encharcados e cheios de frio. A chuva foi-se da mesma forma que chegou - repentinamente. Pela estrada que descíamos podíamos ver Abancay ao longe e tentávamos decifrar qual dos caminhos sinuosos nos levaria à capital de província, mas qualquer que fosse, nenhuma das opções parecia fácil. Acabámos o downhill tortuoso e poeirento por volta das 4 horas da tarde, mas faltavam-nos 18 quilómetros até Abancay. A estrada era alcatroada no fim da descida, e o Nuno, na sua boa fé motivadora, afirmou que seria como pedalar sobre manteiga, depois das estradas tortuosas que nos haviam acompanhado, mas uma subida é uma subida, e tivemos que fazer 18 quilómetros de subida até Abancay pela noite dentro, porque não havia sítio para acampar, toda aquela área estava populada. Procurámos hospedagem e com o cansaço a revestir os nossos corpos como um cobertor adormecemos.

Dia 14 (23.04.2008)
Abancay
Dia de descanso

Decidimos tirar um dia descanso em Abancay. A cidade é ruidosa e sem grande interesse. Partiremos no dia seguinte.

Dia 15 (24.04.2008)
Abancay
Dia forçoso de descanso

Temos as malas feitas, estamos prontos para partir .Às 10 da manha vamos à recepção perguntar pela roupa que havíamos posto a lavar no dia anterior e que nos haviam garantido estar pronta às 9 da manha. O recepcionista trás-nos um saco com roupa. Ao entregar-me o saco sinto um peso descomunal que só pode ser sinal de uma coisa: a roupa está molhada. Tiro a roupa à frente dele e do Nuno e digo que assim não pudemos viajar, a roupa está completamente molhada e para além do peso, se a levarmos vai ficar a cheirar mal. O senhor diz-nos atabalhoado que a máquina de lavar avariou, e que como não houve sol de manha, a roupa não secou. Pode antecipar-se a inexistência de máquina de secar, e inutilmente argumentamos que nos haviam garantido que a roupa estaria pronta a horas, aliás essa havia sido a condição de deixarmos a roupa a seu cargo. Que não pode fazer nada, é a resposta do senhor. Mandamos a roupa de volta, para que não seja devolvida até estar completamente seca. O senhor aparece de novo por volta das três da tarde com um saco mais leve e a roupa a cheirar a fumo. Pediu-nos mais dinheiro do que havia sido combinado originalmente e furiosos disse-mos que pagaríamos apenas o combinado e nada mais. O senhor ainda tentou discutir mas pusemos-lhe o dinheiro na palma da mão e fechamos a porta do quarto. Para viajar no Peru é necessária uma grande dose de paciência e de grande flexibilidade. Passamos mais uma noite naquela cidade desinteressante.

Dia 16 (25.04.2008)
De Abancay ao passe Abra Sorlaca, a 4000 metros de altitude
37.2 quilómetros percorridos

Os meus olhos não queriam acreditar, tinha na minha frente o que seriam dois quilómetros na saída de Abancay que desafiava as leis da gravidade, aliás foi para mim uma surpresa ver que os carros continuavam agarrados à estrada subindo por ali. Eu seguramente tive que desmontar a minha burra porque nem as pernas nem os pulmões conseguiam produzir oxigénio requerido para ultrapassar aquele obstáculo, sinal do dia que me esperava. A estrada era de alcatrão e seria-o até Cusco, mas segundo os relatos de outros ciclistas aquela era uma subida dura de curva e contra curva, que nos levaria seguramente um dia a subir, 1568 metros de subida compactados em 37 quilómetros para ser mais exacta (os ciclistas sabem bem o que estes números significam). Depois de um mau começo lá sigo, curva sob curva, subida sob subida, a moral estava alta e mais ou menos mentalizada para o sofrimento do dia, mas às quatro da tarde sem avistar o passe, começo a desesperar, aquela subida era infinita e as minhas pernas já não queriam pedalar mais. O Nuno tentava animar-me dizendo que o passe era já a seguir à próxima curva, mas a sua ignorância motivadora só servia para me desanimar ainda mais, pois atrás da última curva, estava mais outra, com mais subida e sem passe à vista. Chegámos finalmente depois das cinco e meia da tarde e quis avançar com a bicicleta até ver a descida, para me assegurar que não havia mais subida. Estávamos divididos, descíamos um pouco ou acampávamos no passe. A resposta foi quase imediata, tínhamos diante dos nossos olhos a paisagem mais fantástica de toda a etapa, uma cordilheira de cumes nevados, céus alaranjados que se preparavam para receber o céu da noite estrelada. Montámos a tenda numa estrada em desuso e saboreámos na noite fria, a recompensa da árdua subida e da comida quente.

Dia 17 (26.04.2008)
Do passe de Abra Sorlaca a perto de Limatambo acampamento a 2634 metros de altitude
76.7 quilómetros percorridos

O cenário ao por do sol fêz-me sentir um ser previlegiado mas o despertar deixou-me sem palavras. Sob os meus pés, um manto de branco, algodão feito das gotas de condensação, em frente seguiam brancas e imóveis as milenares montanhas. O céu despertava com o lento erguer do sol e aos poucos as nuvens densas elevaram-se e envolveram em bruma a nossa tenda e os nossos corpos que tiveram que se abrigar. Dormimos mais um pouco, e as nuvens já tinham seguido no seu percurso pelas montanhas, quando tomámos o nosso pequeno almoço preguiçoso. Agora era verde que víamos debaixo dos nossos pés e a estrada serpenteante que íamos descer. O downhill foi rápido, no alcatrão, solto as rodas e deixo o vento frio bater-me na cara. Esqueço os travões olho aos números no meu conta quilómetros a aumentarem, sobem ate aos 40 quilómetros por hora, a estrada está por minha conta e da minha burra, fiel amiga e companheira. A descida continua e passamos de uma montanha para a outra, a paisagem altera profundamente. Do verde das plantações andinas e dos vales povoados com pequenas aldeias, passamos para um Canyon de cores avermelhadas e amareladas, no fundo um fio de verde safira vivo e pequenas ilhas de areia, estamos a atravessar o Canyon de Apurimac. A a temperatura aumenta o vale de Apurimac è um vale seco, e aumenta também a simpatia das pessoas. Numa loja onde paramos para comprar vegetais, o senhor afirma-nos que não os vende mas que nos dispensará os da sua cozinha. “Quanto é?”, perguntamos ao ver o saco cheio de tomates, batatas, cebolas e alhos. “Nada! Para que sigam desfrutando a vossa viagem no Perú”. “Gracias”, agradecemos, e seguimos com um sorriso nos lábios. Este país é uma caixa de surpresas no que toca às suas gentes, e cada vale revela, ou uma agressividade sentida e manisfetada em palavras, ou uma simpatia honesta. Nunca podemos estar preparados para o que nos espera em cada ser que passa por nós, mas esse é o desafio e a recompensa de ser viajante sobre rodas no Peru. Passamos uma ponte de metal e sabemos que a descida ao Canyon de Apurimac está concluída. Debaixo dos nossos pés o fio de verde que víamos há duas horas atrás na distância, na sua proximidade, revela ser um rio largo de correntes fortes. Começamos uma lenta subida, mas a noite transpõem-se às nossas pedaladas e vê-mo-nos sob o manto escuro à busca de sitio para acampar. Ä beira de um afluente do rio Apurimac perguntamos a uma pastora já idosa se podemos acampar nas suas terras, mas as terras não eram suas, conseguiu comunicar-nos em quechua e apontou para um senhor que vinha a descer pelas encostas do monte. Dirigimo-nos a ele, e eu não pude deixar de notar a cobra morta que trazia pendurada num pau.” Que sim, que podíamos acampar sem problema nenhum”, foi a sua resposta e seguiu caminho fora de cobra em riste. Montámos a tenda nos seus terrenos e dormimos profundamente depois do dia cansativo.

Dia 18 (27.04.2008)
De perto de Limatambo a Anta, alojamento a 3445 metros de altitude
59.1 quilómetros percorridos

A subida que havia começado com inclinações aceitáveis, foi-se transformando numa subida lenta e dolorosa. A verdade è que já estava farta de tanto sobe e desce, a minha desmotivação tirava das minhas pernas a energia necessária às pedaladas finais até chegar a Cusco. Os comentários do Nuno sobre a minha lentidão e o meu rendimento, eram tudo menos encorajadores. Sentia que já havia feito muito até ali e que as suas palavras não eram justas, e seguramente não eram a forma correcta para me motivar, as lágrimas vieram aos meus olhos, estava cansada. No meu avançar lento, um homem que passava perguntou-me para onde ia, ao que eu respondi inocentemente que ia para Cusco. Ele não acreditou e disse que eu não chegaria nem ao passe na minha bicicleta. Do fundo não sei bem de onde, arranquei as últimas forças que existiam em mim naquele dia e não só subi até ao passe como desci e fiz o percurso até Anta, uma vila ruidosa, populada por mototaxis e vacas deambulantes. Estávamos a apenas 27 quilómetros de Cusco aí chegaríamos a tempo para renovar os nossos Visas tem termos que pagar multa.

Dia 19 (28.04.2008)
De Anta a Cusco, alojamento a 3326 metros de altitude
27 quilómetros percorridos

Tomámos o pequeno almoço no mercado local. Meio litro de sumo feito com frutas ali à nossa frente, duas sandes de queijo e dois cafés, cada um, somos ciclistas e temos outra subida à nossa espera. Tirámos umas fotos, Anta é uma pequena vila onde se entrecruzam várias vias e a linha de comboio. Há uma atmosfera muito rural, vêem-se as mamitas com as suas duas tranças negras, os seus filhotes enfiados nos gorros de la quente, com olhos brilhantes e ensonados, há mercados ambulantes onde se vende um pouco de tudo, desde mantas para o frio, a cabeças de vaca ensanguentadas, o que exige estômago logo nas primeiras horas da manha. As mototaxis carregam atarefadas as pessoas aos seus destinos e dão cor e som à rua principal, que è também a estrada principal. Saímos pelo meio da confusão. É sempre um desafio equilibrar as bicicletas e não chocar contra um carro ou uma mototaxi e vamos deixando para trás aquele rebuliço. As montanhas começam a ficar silenciosas novamente e só o mugir de uma vaca ou um carro ou camião que passam de vez em quando, vão quebrando esse silencio. A estrada é alcatroada e vai subindo aos poucos, sabemos que Cusco está num vale, e que há que subir para depois descer até à grande capital Inca. Preparei-me para o pior, uma grande e dolorosa subida estaria seguramente aguardando, depois de tanto sofrimento Cusco teria que ser uma árdua recompensa, mas não, a subida foi suave e sem querer acreditar, a meio da manha via a placa que anunciava a chegada a Cusco. Na verdade foi uma grande decepção, porque imaginava a entrada da cidade algo diferente, ou pelo menos que não fosse o previsível aglomerado de casas feias e o caos urbano tão característico das cidades Sul Americanas. Como podia esta ser uma das cidades mais visitadas do mundo, um íman de turistas e viajantes? Fui descendo desanimada, nem o facto de ter completado a etapa mais difícil da viagem , ter ultrapassado o maior desafio físico e psicológico da minha vida, e sobretudo, ter chegado a tempo para estender o Visa, pareciam ser suficientes para me animarem, a cidade parecia-me decepcionantemente feia. Descemos rumo ao centro da cidade e aos poucos os sólidos muros restantes das construções Incas que serviam de base aos edificíos coloniais, os mercados coloridos cheios de artesanato, carnes, sementes, vegetais e por fim a Praça Principal! Sim agora entendia. Já mais embrenhada na atmosfera da cidade, percebi o porquê de ser considerada uma das cidades mais bonitas da América do Sul. Cusco é como uma fruta machucada na casca, casca essa que quando retirada apresenta um fruto bom e suculento. Ficámos alojados no Hostal Estrellita, na calle Tullumayo, perto do centro. Este Hostal havia sido recomendado por uns cicloturistas (a Ana da Colômbia e o Philipe da Suíça) e guardámos o contacto como uma nota valiosa, era um hostal barato e conveniente, e em Cusco, isso é um achado. Os próximos dias seriam passados a actualizar os websites, descansar da dura etapa, programar a ida a Machu Pichu, planear as próximas pedaladas e desfrutar a cidade que parecia estar num estado de primavera constante!

Acaompanhem as minhas aventuras, atrvavés do site do Nuno em http://www.ontheroad.eu.com/

Peru, Cusco, 3 de Maio 2008
Joana Oliveira