As buzinas dos carros soavam como hienas furiosas. À minha frente pára, vinda do nada, uma combi (transporte colectivo local), de onde saem mais pessoas do que as que parecia ser possível caberem lá dentro. Desvio-me mas do meu lado esquerdo há filas de carros e camiões emitindo nuvens de fumo preto para uma atmosfera já bastante carregada. As pessoas atravessam-se à minha frente como se eu fosse invisível. Por cima da minha cabeça, letreiros suspensos, anunciando as coisas mais díspares como cabeleireiros, empresas de transporte, universidades...e aqueles que não contam com ajuda de letreiros para anunciar os seus negócios, fazem-no a voz bem alta, gritando preço de transportes, pão fresco, fruta, carne, chamadas telefónicas... Há gente sentada no chão vendendo mercadorias baratas chinesas, frutas, ou carne goteando sangue para os passeios, retirando da estrada o pouco espaço de circulação. Cães esfomeados e lixo por todas as partes, e gente, muita gente a andar de um lado para o outro como se não fossem para lado nenhum, mas que cumprissem a função de preencher o espaços vazios daquele caos. El Alto parece uma cidade que nao deveria ser cidade, feita por gente que nao sabe viver numa cidade e que ali foi forçada a viver. Parece uma máquina gigantesca da qual as peças se soltaram e estão desordenadas sem ordem ou sentido!
Procurámos alojamento durante duas horas mas estava tudo cheio e o que estava disponível era sub-humano. Nessa noite fizemos a grande extravagância da viagem: alojámo-nos num hotel de 3 estrelas e ficámos numa das suas suites. Levaram-nos a bagagem para o quarto, e ali do quinto andar com vistas panorâmicas sobre a cidade do caos, sentimo-nos como peixes dentro de um aquário, protegidos da realidade da cidade ainda que fazendo parte dela. Ali, ela não nos podia tocar, pelo menos por uma noite. A extravagância não saiu cara, o Hotel Alexander, que se promovia como o melhor hotel da cidade custou-nos uns meros 7 euros cada um, merecía-mos.
Íngremes degraus
Eu e o Nuno afastá-mo-nos das multidões e encontrámos um terraço de pedra só para nós onde podíamos em paz usufruir da beleza daquele sítio. Fechei os olhos e pensei em tudo o que tinha já atingido na minha vida. No quão feliz estava. No previligiada que era: estava a viver o meu sonho, viajar o mundo! E nem todos os sonhos que sonhei e concretizei me deram aquilo que deles esperava. Mas viajar, viajar sim é mais do que um sonho é um estado de espírito que me completa e me faz ser quem eu sou, no meu mais verdadeiro eu! No meio das divagações olhei também ao mapa que se desenhava na minha cabeça, nesse mapa via-me a pedalar nas margens do Lago Titicaca, a entrar na Bolívia, a chegar à grande cidade de
Envolvida por séculos de história, pedras silenciosas, vegetação luxuriante, agradeci à minha mãe por ser a mãe maravilhosa que é, pelo seu apoio incondicional. Ao meu irmão, homem alto de cabelos negros e esguios, amigo de infância e amigo de agora que aceitou emprestar-me dinheiro para que o meu sonho pudesse durar mais uns meses e ao meu pai com o qual não partilho tudo o que desejaria, mas que de igual forma aceitou financiar, a título de empréstimo, mais uns meses da minha viagem.
Descemos os degraus e aos poucos, o fim da tarde foi escondendo as ruínas de Machu Pichu novamente, amanha seria outro dia onde millares de turistas veriam aquela que é, com direito, considerada uma das 7 maravilhas do mundo. Voltámos a Águas Calientes com as pernas cansadas, torturadas de tanto subir e descer, mas com as almas mais preenchidas do que nunca.
Pedalando pelas margens Este do Lago Titicaca e a entrada na Bolivía
Saí de Cusco numa manha chuvosa, um carro quase me abalroava e à bicicleta num cruzamento, quando ia em direcção ao terminal de autocarros. Havia ficado uns dias mais na capital Inca e ia ter com o Nuno a Puno, uma cidade turística nas margens Oeste do Lago Titicaca perto da fronteira com a Bolívia, a minha vontade de deixar o Peru e evitar estradas cheias de tráfico foi mais grande do que pedalar 400 quilómetros de paisagem árida altiplânica.
Puno é uma cidade feia, mas infelizmente, isso era algo a que já estava habituada no Peru, e um pouco por toda a América do Sul, parecia toda feita de adobe, mas isso não lhe engrandecia a beleza. Por se encontrar nas margens do Lago Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo, Puno recebe milhares de turistas todos os dias, mas os atractivos que oferece ao visitante, são realmente limitados.
Decidimos fazer a parte Este do Lago Titicaca. A escassa informação que há sobre essa rota é de que é terra de contrabandistas e de estradas incertas - perfeito! Pelo menos quando a outra opçao significam partilhar a estrada sem bermas com autocarros cheios de turistas e tráfico intenso. Tínhamos programado fazer de barco as aldeias flutuantes, mas acordámos tarde e perdemos o barco. O contratempo acabou por ser favorável, nesse dia havia uma greve nacional que resultou em estradas vazias sem tráfico e na realidade não estávamos tão certos de que seriam assim tão interessantes agora que o único apecto real que têm são turistas e índigenas a vender souvenirs.
As cordilheiras à volta de Lago Titicaca
O Lago Titicaca é um lago de águas azuis, em seu redor o ar é muito puro e por isso podem avistar-se, como se estivessem mesmo ali ao lado, algumas das cordilheiras que o rodeiam e os seus cumes brancos.
Nuno e o Lago Titicaca
Há milhares e milhares de anos, quando as placas ocêanicas colidiram com as continentais formando as cordilheiras andinas (oriental e ocidental) uma grande massa de água elevou-se e ficou presa entre as montanhas criando um lago tão grande como um mar. O Lago Titicaca e todos os outros lagos que se encontram no altiplano Peruano e Boliviano, são o que resta desse lago enorme que foi berço de civilizações. No altiplano os rios e os lagos são sistemas que comunicam entre si, já que as cordilheiras oriental e occidental obstruem a passagem das águas para os oceanos.
Pedalamos passando por pequenas aldeias que ladeiam o grande lago e ao fim do dia acampamos ao seu lado, ouvindo o ruído das pequenas ondas que acariciavam as pedras redondas e pequenas das margens, o céu da noite era azul índigo e via-se o reflexo das estrelas nas águas tranquilas. Eram os nossos últimos dias no Peru, em breve estaríamos na Bolívia, um país que ambos desejávamos descobrir com muita ansiedade.
Puerto Acosta, onde se encontra a linha invisivel que separa o Peru da Bolivia e que dá ao lago Titicaca duas nacionalidades, foi a fronteira mais bonita que atravessei, pode parecer bizarro, porque na realidade as fronteiras são geralmente locais que não reservam grandes atractivos. Mas ali no cimo da montanha com o azul e a imensidão do lago aos meus pés, sem oficiais, sem confusão, o mundo parecia-me um local quase perfeito.Pensei que seria bom se um dia todas as fronteiras do mundo fossem assim.
De
Cholita nas ruas de La Paz
Tínhamos o contacto de um casal que acolhia ciclistas
O Illimani como fundo
Apesar de estarmos a usufruir de alojamento gratuito e da hospitalidade da Wilma e do Jesus, El Alto estava a consumir a nossa paciência, ter de atravessar a cidade para regressar à casa dos nossos anfitriões, lutando contra multidões de gente, barulho insuportável, lixo, era verdadeiramente esgotante. À noite, apesar de estarmos num quarto andar o ruído nao nos deixava descansar. Partimos ao fim de 5 dias rumo a Oruro.
Saída de El Alto
Fizémos 300 quilómetros em tres dias e uma manha, de El Alto a Oruro. Pedalei, pela primeira vez na minha vida, 100 quilómetros num dia. Estava contente e motivada. Sabia que o os próximos meses de ciclismo iriam ser duros, mas esse feito deu-me, de alguna forma, muita energia, para seguir.Sentia-me mais forte do que nunca.
Chegada a Oruro
Oruru é uma cidade mineira, o seu centro é agradável, mas os arredores revelam a realidade da cidade e do país, pobreza e falta de infra-estruturas.
Vista da cidade de Oruro
É também em Oruro que se celebra um dos carnavais mais populares e visitados da América do Sul, uma vez por ano, as ruas cinzentas enchem-se de cor, música, seres da mitologia, e mulheres com as pernas desnudas. Ficámos alojados na Residencial Vergara.
Estátua de uma figura mitológica representada no Carnaval de Oruro
Eu e Juan Carlos
Os filhos dos donos eram jovens médicos com os quais fizemos amizade. Numa das tardes, eu e o Juan Carlos, um dos jovens, fomos de bicicleta ver alguns dos atractivos da cidade, Jua explicou-me o significado das estátuas que encontrámos à entrada da cidade, visitámos uma mina gigantesca de ouro a céu aberto, para esta foi criado um lago artificial utilizado para refrigeração da maquinaria, acabámos o dia a desfrutar o pôr do sol no lago Popóo, onde desagua o rio Desaguadero que está também ligado ao Lago Titicaca, mais um lago dos muitos lagos do altiplano que um dia foram um só.
O lago artificial da grande mina
Eu com o Lago Popóo em pano de fundo
Lago Popóo ao entardecer
As próximas pedaladas levar-nos-iam ao Salar de Coipasa e Uyuni, estávamos ávidos de aventura, e ia-mos ter bem mais do que alguma vez esperaríamos ...mas isso sao outras histórias.
Acompanhem as minhas aventuras no site do Nuno em http://www.ontheroad.eu.com/
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