Equador, Cuenca - As maos de Cuenca

A noite

A agua começou a jorrar do tecto através de um chuveiro improvisado eas ondas de prazer percorriam a multidão que dançava frenética entre flashes de luz e escuridão ao som das batidas fortes de musica ora latina ora electrónica.

A musica - o elo de união. A noite - a hora da libertação. Surpreendo-me sempre quando observo como a musica une as pessoas e os corpos. Três horas antes aquele era apenas um sitio escuro com pinturas de arte pop e manga pintadas nas paredes e buracos no chão de madeira. O puro gosto pela musica era por si só o íman que atraia quem ali ia, e aquela foi mais uma noite onde se juntaram seres para comungar apaixão pela musica. O Pop e um sitio que brinda a vida, as amizades, a musica, a dança, e ali um grupo de seres improváveis saiu a noite para desfrutar a amizade recem formada e comunicar através dos corpos- numa língua universal que todos entendem - a dança e a musica!

Roy, um homem com um sorriso eterno e com o espírito de um ser doRenascimento Moderno, a sua paixão por línguas, por cultura, pela espécie humana, pelas viagens, pela América Latina, pelo seu pais, o Equador e pela cidade onde vive, Cuenca. Disfrutei do seu fantástico sentido de humor, das suas historias, da sua amizade, da sua companhia nos quatro dias que se transformaram em três semanas que passei em Cuenca, e naquela noite, da sua fantástica energia e ritmo latino!

Cláudia, a minha amiga de cabelos longos e negros e de olhos que brilham como dois sois. Os nossos passeios, as nossas conversas, as nossas gargalhadas e aquela noite em que dançamos sem parar com a roupa encharcada, comprovando que a latinidade dos dois continentes se expressa de igual forma: gosto pela musica e pela dança.Os seus sonhos de viagem pela Europa neste verão serão seguramente concretizados, assim como o nosso reencontro em terras britânicas. Um dia esta mulher arranjara os dentes das gentes equatorianas, mas nestes próximos meses terá que estudar bastante para cumprir o acordo que fez com o pai e passar todas as cadeiras, conseguindo em troca o bilhete para o velho continente.

Gael, um ciclo turista francês que com o seu companheiro de viagemYves, percorreu a América do Sul durante dois anos fazendo um intercâmbio de jogos infantis franceses com jogos infantis da América do sul,visitando escolas e orfanatos. O seu cabelo a Robinson Crusoe e a barba por fazer, são marcas distintas desta tribo que formam os ciclonautas masculinos do planeta. E nessa noite os seus músculos moveram-se não ao ritmo dos pedais da sua viajada bicicleta mas ao som dos ritmos da musica. Gael já regressou a Franca, e tento imaginar como será a vida dele agora que tem que adaptar-se a sua antiga realidade e ajustar-se ao facto de já não ter de acordar e pedalar pelas montanhas andinas?

Geoff, um viajante improvável, tímido e reservado com 24 anos. E difícil imaginar que esteja a percorrer a América Latina em mota gastando as poupanças que tinha para abrir um negocio e indo contra a desaprovação dos pais, sobretudo quando andou desaparecido na travessia entre o Panamá e a Colômbia. Mas deixou as inibicoes de lado nessa noite dançando envolvido pelos corpos da multidão presente e partilhando o seu sorriso.

Magda, uma estudante Colombiana, que passava as suas ferias visitando os países vizinhos e que passou uma temporada no Equador antes de ir ao Peru visitar Machu Pichu. Optou por ser vegetariana pela defesa dos direitos dos animais, e oriunda da capital da salsa -Cali, mas ali bailou indiferente aos estilos musicais, espalhando alegria e partilhando as suas experiências de viagem.

Jeff, canadiano, também a percorrer o continente americano sobre duas rodas, aficionado ao heavy metal juntou-se ao grupo e dançou sacudindo a poeira dos muitos kilometros de estradas já pedaladas. Agora e o nosso companheiro de viagem.

Quando saímos do POP, o pequeno templo a dança e a alegria, as nossas roupas estavam encharcadas e os nossos peitos cheios de alegria.Talvez alguns de nos não nos voltemos a ver, mas aquela noite havia sido um momento tão especial que ficara marcado nas nossas memorias como uma pintura num mural, sobrevivendo a passagem do tempo e sendo a razão pela qual viajamos - pela amizade!

A espera

Depois de atravessar as montanhas numa nuvem constante que não nos deixava ver nada a nossa volta, impedindo-nos de desfrutar a recompensa das árduas subidas, chegamos a Cuenca. Cuenca a cidade que reflectia o sol nas suas paredes coloridas de colonialidade dos tempos idos. A cidade que a custa de ser património mundial vai preservando a sua herança arquitectónica e sendo um oásis de urbanidade no meio das montanhas andinas. Um centro de turistas, ou gringos, como nos chamam os locais. Muitos estão só de visita mas enamoram-se de tal forma da cidade que acabam por ficar para sempre. Cuenca estava assinalada no nosso mapa de viagem como um local para recuperar forcas, esperar os meus cartões de multibanco e para planearmos as próximas pedaladas rumo ao Peru. Mas as minhas três semanas em Cuenca transformaram-se em dias que também eu me envolvi com a cidade e as suas gentes de tal forma que quando foi tempo departir senti um fio invisível a prender-me aquela terra de rios entrecruzantes. A encomenda nunca chegou. E o Nuno que havia partido rumo a selva umasemana depois de termos chegado a Cuenca, esperava-me há já uma semana em Loja a cerca de 200 kilometros a sul. A vida e surpreendente quando deixamos que as coisas aconteçam: nos primeiros dias que estive em em Cuenca sozinha sentia-me aborrecida, pensado no que iria fazer com todo aquele tempo de espera, e um dia deixei a porta do meu quarto solarengo no Hogar Cuencano (hostal onde estava alojada e que recomendo) e esse acto, ainda que simbólico, iniciou a entrada de pessoas muito interessantes na minha vida. Essa tarde passei-a a comer cerejas com o meu vizinho do quarto do lado, Tomoki, um excêntrico Japonês, que partilhou as suas aventuras como mochileiro na América Latina, e com o qual sai essa noite para dançar num POP vazio, onde os três (O Kaido, um Esloveno também hospedado no hostal, que se juntou a nos) passamos aquela que foi a primeira de muitas noites doidas ao som das batidas fortes e contagiantes. Quando se viaja tem-se a sensaçãode que cada momento e irrepetivel e único, as inibicoes não fazem sentido porque não tens nada a perder. Os três preenchemos o espaço vazio do POP dançando, saltando, os sorrisos desenhavam-se com facilidade, sabíamos que cada um seguiria o seu rumo nos dias seguintes, Tomoki partiria para o Peru e Kaido iria para a costa do Equador, a brevidade daquele encontro tornou-o ainda mais intenso. Tal como as pecas de domino que coloco em linha, serpenteantes umas atrás das outras, para observar o efeito causado pelo desencadear de uma acção - o deixar cair a primeira peça - também o facto de ter deixado que Cuenca se desvendasse, permitindo que estranhos entrassem na minhavida, desencadeou um serie de acções onde conheci outros viajantes, mas sobretudo as gentes que de uma forma ou de outra povoam Cuenca e a fazem ser uma cidade com tanta riqueza humana!

As mãos de Cuenca

Quando vi aquelas botas pequeninas de cabedal no meio da desorganização daquela oficina de sapateiro, senti uma vontade irresistível de saber a historia por detrás das mãos que haviam moldado aqueles dois pedaços de couro em duas peças de calçado que me faziam lembrar tempos passados, tempos onde as coisas se mandavam fazer, o tempo em que a vida dos objectos se estendia para lá da primeira falha de uso. Voltei ao sapateiro no dia seguinte com o único pretexto de conhecer as mãos que trabalhavam os sapatos gastos de Cuenca.

Em Cuenca os objectos têm uma vida prolongada porque a cidade ainda vive da ressurreição das coisas mais do que do consumo guloso que se vive no mundo ocidental, e esse processo preserva as centenas de oficinas que reparam e criam. Um velho casaco de cabedal pode ser facilmente recuperado, os vestidos podem ser feitos à medida, um enxoval inteiro pode ser bordado por mãos hábeis, uma viola pode ser feita à medida dos desejos do músico, um chapéu pode moldar-se da forma mais tradicional ou mais excêntrica. É um prazer inventar coisas para remendar e vê-las ganharem nova vida através das mãos hábeis.

O Sr. Luís David Billa tem passado os dois últimos anos da sua vida numa sala escura e desarrumada, com uma prateleira cheia de sapatos por arranjar entre outros já arranjados. Aquela sala abre-se para arua e os sons entram ruidosos dos carros, dos tacões dos sapatos e das vozes dos transeuntes. Ás vezes entram também clientes ou um ou outrovizinho que ali troca os bons dias e segue caminho. O Sr. Luís aprendeu a fazer e remendar sapatos quando tinha 10 anos, mas tentou a sua sorte noutros ofícios na esperança de fazer mais dinheiro. Não teve sorte. Trabalhou como pedreiro mas caiu de um andaime e partiu a bacia. Tentou fazer vida nos canaviais de cana do açúcar, mas cortava-se frequentemente com a manchete e desistiu. Casou, teve dois filhos e divorciou-se. Só um dos filhos é vivo. Não mantém contacto com a sua família e vive sozinho. A sua vida é triste. A sua vida é escura. Ali sentada a conversar ao seu lado comecei a perceber a dificuldade que tinha para arranjar a sola das sapatilhas que tinha nas mãos. Tem cataratas e as suas pequenas economias serão utilizadas na esperança de que uma operação lhe traga mais luz à vida, pelo menos a luz que lhe permita ver melhor para realizar o trabalho que lhe dá sustento. E luz tinha também o seu sorriso e a felicidade de ter ali uma estranha que escutasse as suas histórias. Mostrou-me os sapatos típicos que ainda faz, com couro entrançado e as botinhas de cabedalque me fascinaram. Eram para uma menina com uma deficiência e por isso tinham que ser feitas à mão, à medida. Mais tarde um dos seus poucos amigos juntou-se a nós, é ele que vai orientando o Sr Luís nos trabalhos mais complicados. Depois de 4 horas a conversar, vim-me embora. Doía-me o peito, porque a solidão e a tristeza dos outros também a sentimos. Passam tantas pessoas na nossa vida e na realidade muito pouco da sua vida passa por nós.

Numa outra deambulação peatonal por Cuenca fui encontrar outras mãos, as mãos de uma senhora pequenina e muito simpática que fazia e bordava vestidos com os desenhos típicos de Cuenca! A Senhora Beatriz Peralta. Num edifício Colonial de grandes arcadas o município de Cuenca criou um espaço onde os artesãos podem ter as suas oficinas por apenas 34 dólares por mês. Uma loja de rua custar-lhe-ia mais de 300 dólares. A localização central atrai diariamente muitos visitantes e mantém assim possível a preservação das tradições e artes populares daquela região. A Senhora Beatriz Peralta é solteira, mas partilha a casa com mais três mulheres: a irmã e as duas sobrinhas. A irmã é a criadora dos padrões bordados, inspirados na tradição Cuencana. Aos bordados das blusa são dados nomes de mulher. Mas são poucos os que sabem apreciar as qualidades das coisas feitas à mão. O Equador foi invadido por produtos baratos chineses e aos poucos as pessoas vão consumindo as modas que uniformizam os gostos à volta do planeta num sopro de estética globalizada. Um dia não haverá mais quem borde, quem faça chapéus à mão, os sapatos deitar-se-ao fora com o primeiro buraco na sola.

Interessante foi também descobrir as mãos das novas gerações e através delas compreender as expectativas de um país que parece começar a dar os primeiros passos rumo a um futuro com mais esperança, e talvez com mais opções. Cuenca tem meio milhão de habitantes, mas passadas três semanas já se sente o ar de familiaridade das pequenas aldeias. Esboçam-se "buenos dias" as caras mais familiares, já se regularizam os hábitos e se vai ao mesmo restaurante comer, a senhora da hostal fica preocupada se chegas mais tarde. Aos poucos os estranhos passam a ser conhecidos. Todos me vão perguntando pela encomenda e dizendo que ainda bem que não chegou porque assim fico mais tempo em Cuenca. Eu comecei a sentir o mesmo. E na minha busca pelas mãos de Cuenca conheci também as mãos de Felipe, empregado do Internet café, recém tornado DJ do POP, estudantede engenharia automóvel. A sua vida é vivida intensamente sem dias de descanso entre o Internet café, as suas sessões de música ás quintas, sextas e sábados, e os seus estudos durante a semana. São 22 anos cheios de esperança,cheios de sonhos, de alegria, de música. A sua latinidade é irrepreensível na forma como galanteia o sexo oposto. Também um dia viajará pela Europa quando acabar o seu curso, ou pelo menos esses são os seus sonhos.

O Rafael, estudante de arte. Falou-me do seu projecto de fim de curso onde pretende recuperar os corpos dos cadáveres que não são reclamadosna morgue para procurar as suas histórias e tatuá-las nos seus corpos sem vida, assim pretende dar voz a uma vida que passaria de outra forma ao esquecimento, como se na realidade esse ser nunca tivesse existido. Através destas vozes silenciosas pretende mostrar o quanto ignoramos aqueles que nos rodeiam, sobretudo os que estão à margem. Com a morte as histórias dos que já não estão perdem-se, sobretudo se essas mesmas histórias nunca foram conhecidas em vida. É um projecto incómodo porque levanta questões tabu: a morte, a marginalidade, o corpo, mas suponho que uma vez que a arte abandonou os seus limites para agradar aos cânones de estética, questionar as coisas que nos rodeiam e apresenta-las de forma chocante, será porventura a forma mais eficaz de levantar questões e gerar debate numa sociedade que parece cada vez mais indiferente à miséria do próximo mas mais sedenta de um imaginário sensacionalista. Aguardamos os resultados.

Ficar ou partir

A encomenda não chegava, o Nuno já me esperava em Loja há quase uma semana, tinha que decidir: avançar para Sul e continuar a minha aventura de bicicleta ou ficar em Cuenca e abraçar um novo projecto? Decidi ir rumo ao Sul o chamamento foi mais forte. Não me despedi de muitos dos amigos que fiz porque detesto despedidas, e porque espero com uma força muito grande um dia voltar a Cuenca. Nos dias seguintes voltei a pedalar as montanhas andinas, mas desta vez com mais sol. As minhas aventuras rumo ao Peru seguir-se-ao em breve!

PS - Desculpem a falta de fotografias, as que estao nesta cronica foram as que consegui recuperar de amigos, as minhas fotos ficaram perdidas num triste evento onde perdi tambem a minha camara.

Equador, Cuenca 25 Janeiro 2008
Joana Oliveira

1 comentário:

João Leitão VIAGENS disse...

Olá! estou a caminho do Ecuador e adorei ler um pouco sobre este país ainda mais um relato aventura como o teu que viajaste lá de bicicleta. Grande abraço e boa continuação!